Capítulo 2 - Sinais do Corpo
- Marcus Vinicius SS
- 25 de jun.
- 50 min de leitura

Meu nome é Lorena Amanda Oliveira Viana, e aos vinte e três anos, o mundo se desdobrava diante de mim como um complexo estudo de caso psicológico. No terceiro ano de Psicologia, eu vivia imersa em teorias, diagnósticos diferenciais e a busca incessante por compreender os labirintos da mente humana. Morava no Itaigara, um bairro que, embora vizinho ao de Leandro, meu namorado, possuía uma atmosfera distinta, mais vertical e com o ritmo acelerado de quem sempre tem um compromisso. Minha irmã mais velha, Mariana, já casada e com sua própria rotina em Londres, era um contraponto à minha vida acadêmica, um lembrete constante das diferentes formas que a vida adulta pode tomar.
O apartamento dos meus pais, onde eu ainda morava, ocupava o terceiro andar de um edifício elegante com vista para o parque da cidade. Meu quarto era um santuário de livros, post-its coloridos e quadros de arte contemporânea – uma mistura de organização meticulosa e caos criativo que refletia perfeitamente minha personalidade. Minha mãe, Dra. Cláudia, diretora clínica de um dos maiores hospitais privados de Salvador, sempre brincava que eu herdara dela a obsessão por detalhes e de meu pai, professor universitário de Filosofia, o questionamento constante sobre tudo.
Naquela terça-feira chuvosa, três dias antes do mundo virar de cabeça para baixo, eu estava debruçada sobre um artigo particularmente denso sobre o impacto do estresse crônico na memória de curto prazo. Tinha acordado mais cedo que o habitual, com uma inquietação estranha que atribuí à ansiedade pelo seminário que apresentaria na semana seguinte. Meu orientador, Dr. Maurício, era conhecido por seu rigor implacável, e eu queria impressioná-lo com uma análise original sobre os mecanismos neurológicos do trauma.
O apartamento, normalmente um refúgio de silêncio e concentração quando meus pais saíam para trabalhar, parecia estranhamente distorcido. Uma sensação incômoda, um peso no pé da barriga que ignorei inicialmente, poderia ter sido pelo café forte demais ou às horas sentada na mesma posição. Meu corpo, no entanto, parecia querer me dizer algo, sussurrando sinais que minha mente, tão ocupada em decifrar os outros, relutava em escutar.
Levantei-me para abrir a janela, buscando ar fresco. Lá fora, Salvador desabava em chuva de manhã, as cores vibrantes da cidade dessaturadas pelo mau tempo quase irreal. Respirei fundo, tentando afastar aquela sensação de desconforto. Foi quando notei uma mancha de sangue na minha calça do pijama – pequena, quase imperceptível, mas definitivamente ali.
— Que estranho —, murmurei para mim mesma, franzindo o cenho. Meu ciclo era regular como um relógio suíço, resultado de anos tomando anticoncepcional para controlar a endometriose leve que me fora diagnosticada aos dezessete anos. Não deveria menstruar por pelo menos mais uma semana. Fui ao banheiro, verificando se não estava enganada. Não estava. Um sangramento leve havia começado, acompanhado por uma cólica que, embora não fosse incapacitante, era definitivamente mais intensa que o habitual.
Tomei um analgésico, troquei de roupa e voltei aos estudos, tentando ignorar o incômodo. Sempre fui do tipo que não se deixa abater facilmente por desconfortos físicos – talvez uma herança da minha mãe, que eu já vira trabalhar com febre alta e enxaqueca. "O corpo é apenas um veículo para a mente", ela costumava dizer, uma filosofia cartesiana que eu absorvi sem questionar durante a infância, mas que meus estudos em psicologia agora me faziam reavaliar criticamente.
Leandro havia me mandado uma mensagem mais cedo, algo sobre um jantar na Barra. Sorri ao ler. Ele era meu porto, a calmaria em meio às minhas próprias tempestades internas e às complexidades da psique alheia que eu tanto estudava. Seu pragmatismo de designer, a forma como ele encontrava beleza e ordem em formas e cores, era um bálsamo para minha alma muitas vezes atormentada por questões existenciais e sociais.
Conheci Leandro há dois anos, em uma exposição no Museu de Arte Moderna. Eu estava lá sozinha, contemplando uma instalação particularmente provocativa – uma série de espelhos fragmentados que distorciam a imagem do observador. Estava tão absorta analisando as metáforas sobre percepção e realidade que mal notei quando ele se aproximou, perguntando minha opinião sobre a obra. Havia algo em seu olhar atento, na forma como ele realmente escutava, que me cativou imediatamente. Passamos o resto da tarde vagando pelo museu, discutindo arte, filosofia, e as pequenas coisas que fazem a vida valer a pena. Quando trocamos números ao final do dia, eu já sabia que ele era diferente de qualquer pessoa que eu havia conhecido antes.
Nosso relacionamento evoluiu naturalmente, como se nossas vidas estivessem em uma trajetória de colisão inevitável. Ele me ensinou a apreciar a beleza nas coisas simples – o degradê perfeito de um pôr do sol, a tipografia elegante de um livro antigo, o equilíbrio de cores em uma fotografia bem composta. Eu, por minha vez, o introduzi ao fascinante mundo da psicologia, às complexidades da mente humana, às teorias que tentam explicar por que somos quem somos. Éramos complementares, cada um preenchendo espaços que o outro nem sabia que existiam.
Respondi sua mensagem com um áudio, sugerindo moqueca pois já fazia um tempo que não comia uma e reclamando, em tom de brincadeira, da densidade do material de estudo. Mencionei de passagem um leve mal-estar, uma cólica chata e fora de hora, mas sem dar muita importância. — Deve ser só impressão — minimizei, mais para mim mesma do que para ele.
Voltei ao artigo, mas a concentração já não era a mesma. As palavras pareciam flutuar na página, e minha mente vagava, capturando fragmentos de pensamentos desconexos. A cólica, longe de diminuir com o analgésico, parecia aumentar gradualmente. Massageei logo embaixo do umbigo, respirando fundo como aprendera em minhas aulas de yoga – uma prática que adotara no ano anterior como forma de gerenciar o estresse acadêmico.
Durante a tarde, a sensação persistiu, uma pontada insistente que me distraía da leitura. Lembrei-me de uma conversa com minha mãe ao telefone no dia anterior; ela também se queixara de um cansaço incomum e de dores de cabeça. Coisas da idade, ela disse. Mas agora, sentindo aquela pressão interna, uma irritabilidade crescente me invadiu. Olhei o calendário novamente, confirmando que meu ciclo menstrual não deveria chegar por pelo menos mais uma semana.
"Que estranho", pensei, enquanto massageava a barriga discretamente. Tentei focar novamente nos estudos, mas as palavras se confundiam na página, a concentração se esvaindo. Decidi fazer uma pausa, preparando um chá de camomila na esperança de acalmar o desconforto crescente.
Na cozinha, liguei a televisão por hábito, mais como ruído de fundo enquanto a água fervia. Foi quando captei um fragmento de notícia que me fez parar no meio do movimento: "...relatos de mulheres em todo o país apresentando sintomas menstruais inesperados...". Aumentei o volume, subitamente alerta. A repórter, com expressão confusa, relatava um fenômeno incomum – um número crescente de mulheres procurando atendimento médico com queixas de cólicas intensas e sangramentos fora do período esperado.
"Especialistas ainda não têm explicação para o fenômeno, que parece estar se espalhando rapidamente", dizia ela. "Hospitais em várias capitais reportam um aumento significativo na procura por ginecologistas e emergências nas últimas 24 horas."
Um arrepio percorreu minha espinha. Não era apenas eu. Não era coincidência. Algo estava acontecendo, algo que transcendia explicações simples como estresse ou irregularidades hormonais individuais. Minha mente analítica imediatamente começou a formular hipóteses – algum tipo de contaminação ambiental? Um vírus desconhecido? Efeitos colaterais de algum medicamento amplamente utilizado?
No final da tarde, decidi ligar para uma colega de curso, Juliana, para discutir o artigo e, discretamente, sondar se ela também estava sentindo algo semelhante. Enquanto falávamos sobre as implicações da pesquisa, ela também mencionou, casualmente, que estava se sentindo "meio esquisita", com cólicas e uma sensibilidade emocional à flor da pele.
— É estranho, né? — ela comentou. — Minha menstruação não deveria vir agora, mas comecei a sangrar hoje de manhã. E minha roommate também. Pensamos que fosse coincidência, mas aí vimos algo nas redes sociais...
— O que exatamente? — perguntei, sentindo meu coração acelerar.
— Aparentemente, está acontecendo com muitas mulheres. Tem uma hashtag bombando, #SincroniaEstranha. Mulheres de todo o país relatando a mesma coisa; menstruação fora de hora, cólicas mais intensas que o normal. Algumas estão especulando que pode ser algum tipo de experimento governamental, ou efeito de alguma radiação…
Rimos nervosamente, especulando se seria alguma virose nova ou apenas a pressão do semestre. Mas por trás do riso, havia uma inquietação crescente, uma sensação de que estávamos à beira de algo sem precedentes. Nenhuma de nós poderia imaginar a dimensão do que estava por vir, a sincronicidade macabra que se desenhava no horizonte biológico de metade do planeta.
Após desligar, abri meu laptop e comecei a pesquisar. As redes sociais estavam, de fato, repletas de relatos semelhantes. Mulheres de diferentes idades, localizações e históricos médicos descrevendo os mesmos sintomas. Alguns posts eram alarmistas, outros céticos, muitos confusos. Médicas e enfermeiras compartilhavam observações de seus plantões, confirmando um aumento incomum de pacientes com queixas ginecológicas.
Minha formação em psicologia me fazia naturalmente cética quanto a fenômenos de massa e histeria coletiva. Sabia como a sugestão e o contágio social podiam criar sintomas psicossomáticos reais. Mas havia algo diferente aqui – algo demasiado físico, demasiado generalizado, demasiado sincronizado para ser explicado apenas por mecanismos psicológicos.
À noite, quando Leandro passou para me buscar para um lanche rápido, comentei com ele sobre o mal-estar persistente e a coincidência da minha colega. Ele, sempre prático, sugeriu que eu descansasse, talvez tomasse um chá.
— Deve ser o estresse da faculdade, meu amor — ele disse, afagando meu cabelo. — Você se cobra demais.
Não mencionei as notícias ou os relatos nas redes sociais. Parte de mim queria protegê-lo daquela inquietação, outra parte temia parecer alarmista sem ter certeza do que realmente estava acontecendo. Eu queria acreditar que era só isso – estresse, coincidência, talvez uma sugestão coletiva amplificada pela velocidade das redes sociais. Mas no fundo, uma intuição, um arrepio gelado na espinha, me dizia que havia algo mais, algo diferente no ar, nos sinais do meu corpo, nos relatos que começavam a pipocar.
Era como se uma nota dissonante tivesse sido introduzida na sinfonia do cotidiano, quase imperceptível, mas prenunciando uma quebra na harmonia que conhecíamos. Como estudante de psicologia, eu havia aprendido a valorizar a intuição – não como algo místico ou sobrenatural, mas como o resultado de nosso cérebro processando informações em níveis que nossa consciência não consegue acessar diretamente. E minha intuição gritava que estávamos à beira de uma transformação profunda.
Naquela noite, deitada na cama enquanto tentava em vão adormecer, senti as cólicas intensificarem. O sangramento também aumentara, mais pesado do que qualquer menstruação normal que já tivera. Tomei outro analgésico, ajustei a bolsa de água quente contra o abdômen e fechei os olhos, tentando respirar através da dor. Meu celular, na mesa de cabeceira, continuava a vibrar com notificações – provavelmente mais atualizações sobre o fenômeno que agora dominava as redes sociais.
Decidi ignorá-las por enquanto. Precisava descansar, recuperar forças. Amanhã, pensava eu, tudo estaria mais claro. Amanhã, talvez, descobriríamos que era apenas um susto, uma anomalia passageira, algo que os cientistas explicariam com um sorriso condescendente para acalmar o pânico coletivo.
Mal sabia eu que aquela noite marcava apenas o início. Que o corpo feminino, historicamente silenciado, ignorado e medicado para se adequar às expectativas sociais, estava prestes a se manifestar em uma escala global, impossível de ignorar. Que os sinais que meu corpo enviava não eram apenas meus, mas parte de um coro crescente que em breve se tornaria ensurdecedor.
O sono finalmente veio, inquieto e povoado por sonhos estranhos de marés vermelhas e mulheres marchando em silêncio. Acordei várias vezes durante a noite, suada e desorientada, a dor pulsando em ondas. Em uma dessas vezes, cheguei a me perguntar se não deveria ligar para minha mãe, pedir conselho médico. Mas algo me deteve – talvez o hábito de não incomodar, talvez o orgulho, talvez a intuição de que ela própria estaria enfrentando seus próprios desafios naquele momento.
Na manhã seguinte, a realidade que me aguardava seria ainda mais estranha e assustadora do que qualquer pesadelo que pudesse ter tido. O mundo como o conhecíamos estava prestes a mudar para sempre, e meu corpo já sabia disso antes mesmo que minha mente pudesse compreender. Os sinais estavam lá, pulsando em cada célula, em cada gota de sangue – o prenúncio de uma revolução silenciosa que começava de dentro para fora, reescrevendo as regras da biologia e, consequentemente, da sociedade que construímos sobre ela.
***
Acordei na manhã seguinte com o som do meu celular vibrando insistentemente na mesa de cabeceira. Ainda atordoada pelo sono inquieto, estendi a mão para silenciá-lo, mas a dor aguda que atravessou meu abdômen ao me mover me arrancou um gemido involuntário. Fiquei imóvel por alguns segundos, respirando superficialmente, esperando que a onda de dor recuasse. Quando finalmente consegui alcançar o aparelho, vi que eram múltiplas notificações – mensagens de Leandro, chamadas perdidas de minha mãe, e um fluxo interminável de alertas de notícias e redes sociais.
A primeira mensagem de Leandro me fez sentar na cama, ignorando a pontada de dor:
— Lo, você está bem? Estou vendo as notícias. Me responde assim que puder.
Notícias? Desbloqueei a tela e abri o aplicativo de um grande portal. A manchete me atingiu como um soco no estômago:
"FENÔMENO GLOBAL: MULHERES EM TODO O MUNDO RELATAM SINTOMAS MENSTRUAIS SIMULTÂNEOS"
Abaixo, uma série de subtítulos igualmente alarmantes:
"Hospitais sobrecarregados em todos os continentes"
"Cientistas perplexos com sincronização menstrual em escala planetária"
"Primeiros relatos de mortes relacionadas ao 'Evento Vermelho'"
Mortes? Meu coração acelerou. Cliquei na notícia, lendo rapidamente sobre casos de mulheres com condições pré-existentes – endometriose severa, miomas, distúrbios de coagulação – que não resistiram à intensidade dos sintomas. Números ainda não confirmados falavam em centenas de mortes, possivelmente milhares.
Tentei levantar, mas uma nova onda de dor me dobrou ao meio. Era como se alguém estivesse torcendo meus órgãos internos com mãos de ferro. O sangramento havia aumentado drasticamente durante a noite, encharcando o absorvente e manchando os lençóis. Nunca havia experimentado algo assim, nem mesmo nos piores dias antes de começar o tratamento para endometriose.
Respirei fundo, tentando controlar o pânico crescente. Precisava de ajuda, mas meus pais não estavam em casa – minha mãe provavelmente já estaria no hospital, lidando com a crise, e meu pai dava aulas nas manhãs de quarta-feira. Tentei ligar para Leandro, mas a ligação caiu imediatamente. As redes de telefonia deviam estar sobrecarregadas.
Com esforço, arrastei-me até o banheiro. O espelho refletiu uma versão de mim que mal reconheci – pálida, com olheiras profundas, o cabelo grudado na testa suada. Tomei dois analgésicos, o dobro da dose recomendada, e liguei o chuveiro, deixando a água quente cair sobre meu corpo dolorido. O sangue escorria por minhas pernas, diluindo-se na água antes de desaparecer pelo ralo – uma imagem que, em meu estado febril, parecia estranhamente simbólica.
Enquanto me vestia, ouvi o telefone fixo do apartamento tocar. Consegui chegar até ele a tempo, apoiando-me nas paredes.
— Lorena? — A voz de minha mãe soava tensa, profissional, mas pude detectar o subtexto de preocupação que ela tentava esconder.
— Mãe, o que está acontecendo? — Minha voz saiu mais fraca do que pretendia.
— Estamos tentando entender. — Ela fez uma pausa, e pude ouvir o caos do hospital ao fundo – vozes elevadas, equipamentos apitando, choro. — É global, Lorena. Todas as mulheres em idade reprodutiva, em todos os lugares. Nunca vi nada parecido.
— Eu estou... — comecei, mas ela me interrompeu.
—Como estão seus sintomas? Sangramento intenso? Dor em que nível, de um a dez?
Reconheci imediatamente sua voz clínica, a mesma que usava com pacientes. Era sua forma de lidar com o medo – transformá-lo em ação médica, em protocolos, em algo que pudesse controlar.
— Sangramento muito intenso. Dor... sete, talvez oito. — Hesitei. — Mãe, estou com medo.
Houve um silêncio breve, e quando ela falou novamente, sua voz estava mais suave.
— Eu sei, querida. Todos estamos. Escute, tome ibuprofeno, use compressas quentes, beba muita água. Se a dor passar de oito ou se o sangramento aumentar ainda mais, vá para o hospital imediatamente. Não tente vir para cá – estamos completamente sobrecarregados. Vá para a clínica no fim da rua, eles estão organizando um atendimento especial.
— E você? Como você está?
Outro silêncio.
— Estou lidando com isso. A vantagem de ser médica é que posso me automedicar. — Tentou uma risada que não soou convincente. — Preciso desligar agora. Há... há muitas pacientes precisando de ajuda. Seu pai está tentando voltar para casa, mas o trânsito está caótico. Você consegue ficar bem sozinha por enquanto?
— Sim, — menti, não querendo adicionar mais preocupação ao seu fardo já pesado. — Vou ficar bem.
Após desligar, voltei para meu quarto e liguei a televisão. Todos os canais cobriam o mesmo assunto – o fenômeno que já estava sendo chamado de "Sincronia Global" ou "Evento Vermelho". Imagens de hospitais lotados, farmácias com filas quilométricas, mulheres sendo carregadas por parentes, algumas desmaiadas nas ruas. Um especialista falava sobre teorias – desde alinhamentos planetários até contaminação da água, passando por armas biológicas e punição divina. Ninguém parecia ter uma explicação científica sólida.
Meu celular vibrou com uma mensagem de Juliana:
— Você está vendo isso? É LOUCURA. Minha roommate desmaiou de dor. Estamos no hospital. Filas enormes. Algumas meninas da nossa turma estão organizando um grupo de apoio online. Entra no link.
Cliquei no link, que levava a um grupo de WhatsApp já com mais de 200 participantes – todas mulheres, a maioria estudantes de nossa universidade. A conversa corria frenética, com relatos de sintomas, dicas para aliviar a dor, ofertas de ajuda para quem estava sozinha, compartilhamento de informações médicas. Era um microcosmo do que estava acontecendo globalmente – mulheres se unindo instintivamente diante de uma crise que só elas podiam compreender plenamente.
Uma nova onda de dor me fez dobrar sobre mim mesma, deixando cair o celular. Quando a intensidade diminuiu o suficiente para que pudesse me mover, arrastei-me até a cozinha em busca de uma bolsa de água quente. No caminho, passei pela sala, onde a televisão continuava transmitindo notícias cada vez mais alarmantes.
"...relatos de tumultos em farmácias e supermercados, com estoques de absorventes, analgésicos e anti-inflamatórios esgotados em questão de horas..."
"...governos de vários países declarando estado de emergência sanitária..."
"...estimativas preliminares indicam que aproximadamente 1,8 bilhão de mulheres em idade reprodutiva estão simultaneamente menstruando, um fenômeno sem precedentes na história humana..."
Enquanto esperava a água ferver, apoiei-me na bancada da cozinha, tentando processar a magnitude do que estava acontecendo. Minha mente analítica, treinada para buscar padrões e explicações, lutava para encontrar sentido em algo que desafiava todas as leis conhecidas da biologia. Como estudante de psicologia, eu conhecia bem os fenômenos de histeria coletiva e sugestão psicossomática, mas isso era diferente – era físico demais, biológico demais, universal demais para ser explicado por mecanismos psicológicos.
O som da campainha me arrancou de meus pensamentos. Com esforço, fui até a porta e olhei pelo olho mágico. Era Leandro, parecendo preocupado e um pouco desgrenhado, como se tivesse corrido até ali. Abri a porta, e a expressão em seu rosto ao me ver deve ter sido reveladora, porque ele imediatamente me envolveu em um abraço cuidadoso.
— Meu Deus, Lo, você está pálida, — ele disse, fechando a porta atrás de si. — Tentei ligar, mas as linhas estão congestionadas. O metrô parou, tive que vir de ônibus, e mesmo assim só consegui porque um motorista teve pena de mim quando expliquei que estava tentando chegar até você.
Deixei-me ser guiada até o sofá, onde me sentei com cuidado.
— Como está lá fora?
— Caótico. — Ele passou a mão pelo cabelo, um gesto que reconheci como sinal de sua ansiedade. — Filas enormes em farmácias, mulheres desmaiando nas ruas, ambulâncias por toda parte. Passei por uma farmácia onde estava tendo quase um tumulto – pessoas brigando por absorventes e analgésicos. A polícia teve que intervir.
A chaleira na cozinha começou a apitar, e Leandro se levantou imediatamente.
— Deixa que eu pego. Você quer chá também?
Assenti, grata por sua presença. Enquanto ele se movia pela cozinha com a familiaridade de quem já conhecia bem o espaço, peguei meu celular para verificar as atualizações. Havia uma mensagem de Mariana, minha irmã em Londres:
— Lo, é uma loucura aqui também. TODAS as mulheres, em TODOS os lugares. Estou bem, não se preocupe. Como você está? Mamãe não atende o telefone.
Respondi rapidamente, tranquilizando-a sobre meu estado e explicando que nossa mãe estava no hospital, trabalhando. Enquanto digitava, uma notificação de notícia apareceu:
"BOLSAS DE VALORES DESPENCAM EM TODO O MUNDO DIANTE DA 'CRISE VERMELHA'"
Cliquei na notícia, lendo sobre o impacto econômico imediato – empresas com força de trabalho predominantemente feminina paralisadas, setores de saúde e educação em colapso, mercados financeiros em pânico diante da incerteza. Era como se o mundo estivesse descobrindo, da maneira mais brutal possível, o quanto dependia do trabalho feminino para funcionar.
Leandro voltou com uma xícara de chá e a bolsa de água quente. Sentou-se ao meu lado, observando-me com preocupação enquanto eu posicionava a bolsa contra o abdômen.
— Como está a dor? — perguntou, sua voz suave.
— Vem em ondas, — respondi, tentando soar mais forte do que me sentia. — Às vezes é quase suportável, outras vezes...— Deixei a frase morrer, não querendo preocupá-lo mais.
Ele assentiu, pegando minha mão livre entre as suas.
— Falei com Eliane mais cedo. Ela está no hospital, trabalhando mesmo sentindo dor. Disse que é um caos completo, mas que estão tentando estabelecer protocolos de emergência.
— Típico dela, — comentei, com um pequeno sorriso. Sempre admirei a irmã de Leandro, sua força e dedicação. — E você? Como está lidando com tudo isso?
Ele deu de ombros, um gesto que tentava parecer casual, mas não conseguia esconder sua preocupação.
— Estou bem. Preocupado com você, com Eliane, com todas as mulheres que conheço. É... é assustador, Lo. Ver tantas pessoas sofrendo simultaneamente e não poder fazer nada.
Apertei sua mão, comovida por sua honestidade. Era uma das coisas que mais amava em Leandro – sua capacidade de expressar vulnerabilidade sem sentir que isso diminuía sua masculinidade.
— Você está fazendo algo, — disse suavemente. — Está aqui. Isso significa muito.
Ficamos em silêncio por alguns momentos, absorvendo a estranheza da situação. A televisão continuava transmitindo notícias, agora mostrando imagens de protestos espontâneos em várias cidades – mulheres, muitas visivelmente em dor, marchando com cartazes que exigiam respostas, soluções, reconhecimento.
— Olha isso, — apontei para a tela. — É como se... como se o corpo feminino estivesse se rebelando coletivamente. Como se séculos de silenciamento e medicalização tivessem culminado neste momento.
Leandro me olhou com uma mistura de surpresa e admiração.
— Mesmo em meio à dor, sua mente analítica não para, hein?
Sorri fracamente. — É meu mecanismo de defesa. Teorizar me dá a ilusão de controle.
Meu celular vibrou novamente – uma notificação do grupo da universidade. Abri para encontrar uma mensagem da coordenadora do curso de Psicologia:
"Aulas suspensas por tempo indeterminado. Estamos organizando suporte psicológico online para quem precisar. Estudantes do último ano que puderem ajudar, por favor, entrem em contato."
Mostrei a mensagem a Leandro.
— Parece que vou ter tempo para me recuperar antes de apresentar meu seminário.
— Acho que o mundo inteiro vai precisar de tempo para processar o que está acontecendo, — ele comentou, olhando para a televisão, onde agora um grupo de cientistas discutia teorias sobre o fenômeno.
Uma nova onda de dor me atravessou, mais intensa que as anteriores. Fechei os olhos, respirando superficialmente, tentando não demonstrar o quanto estava sofrendo. Mas Leandro percebeu, é claro. Ele sempre percebia.
— Você precisa descansar, — disse firmemente, ajudando-me a levantar. — Vamos, vou te levar para o quarto.
Não protestei, permitindo que ele me guiasse pelo corredor. A dor estava piorando, e comecei a me perguntar se não deveria seguir o conselho de minha mãe e procurar atendimento médico. Mas as imagens de hospitais lotados na televisão me dissuadiram – havia mulheres em situações muito piores que a minha.
No quarto, Leandro ajudou-me a deitar, ajustando travesseiros para que eu ficasse confortável. Sentou-se na beira da cama, afastando uma mecha de cabelo do meu rosto.
— Preciso de algo do mercado ou da farmácia para você? Posso tentar encontrar analgésicos mais fortes, absorventes...
Balancei a cabeça.
— Tenho o suficiente por enquanto. E duvido que você consiga encontrar algo – pelo que vimos na TV, os estoques já acabaram.
Ele assentiu, parecendo um pouco perdido, querendo ajudar mas não sabendo como. Era uma expressão que eu veria em muitos rostos masculinos nos dias e semanas seguintes – a impotência diante de uma experiência que nunca poderiam compreender completamente.
— Fique comigo? — pedi, odiando o tom de vulnerabilidade em minha voz, mas incapaz de suprimi-lo.
— Claro, — ele respondeu imediatamente, deitando-se ao meu lado com cuidado para não me causar mais desconforto. — Não vou a lugar nenhum.
Ficamos assim por algum tempo, em silêncio, enquanto meu corpo continuava sua revolta dolorosa. Através da janela, podíamos ouvir sirenes ao longe, um coro crescente que parecia vir de todas as direções. O mundo lá fora estava mudando rapidamente, adaptando-se à nova realidade com a mesma velocidade com que as notícias se espalhavam.
— Sabe o que é mais estranho? — murmurei, meio sonolenta pelos analgésicos. — Como estudante de psicologia, sempre fui treinada para ver o corpo e a mente como entidades separadas, com a mente tendo primazia. Cartesianismo puro. Mas agora... agora é como se o corpo estivesse dizendo: 'Ei, estou aqui, sou real, e você não pode me ignorar'.
Leandro ficou em silêncio por um momento, absorvendo minhas palavras.
— Talvez seja isso mesmo, — disse finalmente. — Um lembrete coletivo de que, no final das contas, somos todos corpos vulneráveis, sujeitos a forças que não controlamos.
— Hmm, — respondi, meus olhos se fechando contra minha vontade. — Mas por que só os corpos femininos? Por que agora? Por que todos ao mesmo tempo?
— Talvez essas sejam as perguntas que definirão nossa geração, — ele sussurrou, percebendo que eu estava adormecendo. — Descanse agora. Estarei aqui quando você acordar.
Meu sono foi inquieto, povoado por sonhos estranhos e fragmentados. Em um deles, eu estava em uma praia vermelha, com ondas de sangue lambendo a areia. Em outro, estava em uma sala cheia de mulheres, todas nós conectadas por fios invisíveis que pulsavam em uníssono. Em outro ainda, estava em um anfiteatro, dando uma palestra sobre a psicologia da dor coletiva, enquanto meu próprio corpo sangrava no pódio.
Acordei sobressaltada, desorientada por um momento. A luz no quarto havia mudado – era fim de tarde agora. Leandro não estava mais ao meu lado, mas podia ouvir sua voz vinda da sala, provavelmente ao telefone. A dor havia diminuído um pouco, mas o sangramento continuava intenso. Levantei-me com cuidado, trocando o absorvente no banheiro antes de seguir a voz de Leandro.
Ele estava na sala, falando ao telefone fixo, já que as redes de celular continuavam instáveis. Sua expressão era tensa, preocupada.
— Sim, ela está descansando agora... Não, os sintomas não pioraram... Entendo... Sim, ficarei com ela... Claro, te mantenho informada.
Quando me viu, desligou rapidamente.
— Era sua mãe, — explicou. — Queria saber como você está.
— Como ela está? — perguntei, sentando-me cuidadosamente no sofá.
— Exausta. Disse que nunca viu nada parecido em toda sua carreira. Estão improvisando leitos nos corredores, priorizando casos graves. — Ele hesitou. — Houve algumas mortes no hospital dela. Mulheres com condições pré-existentes que não suportaram o choque.
Assenti sombriamente. Já havia lido sobre isso nas notícias.
— E meu pai?
— Conseguiu chegar em casa, mas teve que deixar o carro a algumas quadras daqui e vir andando. O trânsito está completamente parado em algumas áreas. Ele saiu para tentar encontrar suprimentos – analgésicos, absorventes, o que conseguir.
Olhei para a televisão, que continuava ligada, agora mostrando imagens de uma coletiva de imprensa com autoridades de saúde. O ministro falava sobre medidas emergenciais – distribuição de analgésicos e absorventes, suspensão de aulas e atividades não essenciais, orientações para empregadores.
"...recomendamos que mulheres em idade reprodutiva permaneçam em casa nos próximos dias, se possível. Empregadores devem conceder licença médica sem necessidade de atestado. Estamos trabalhando com a indústria farmacêutica para aumentar a produção de analgésicos e produtos de higiene feminina..."
Leandro sentou-se ao meu lado, passando o braço por meus ombros.
— Como está se sentindo?
— Um pouco melhor, — respondi, encostando a cabeça em seu ombro. — Os analgésicos estão fazendo efeito. Mas estou preocupada com quem não tem acesso a medicamentos, ou quem vive sozinha, ou quem tem condições mais graves...
Ele apertou meu ombro gentilmente. — Você sempre pensa nos outros, mesmo quando está sofrendo.
Dei de ombros. — É o treinamento em psicologia. Somos condicionados a pensar sistemicamente, a ver o indivíduo como parte de um todo maior.
Ficamos em silêncio por alguns minutos, assistindo à coletiva de imprensa. As perguntas dos jornalistas revelavam o pânico crescente: Quanto tempo duraria o fenômeno? Havia risco de morte para mulheres saudáveis? O que causou a sincronização? Era contagioso? Poderia acontecer novamente?
As respostas eram invariavelmente vagas, cheias de "estamos investigando" e "ainda não temos dados suficientes". A incerteza pairava no ar como uma névoa densa, alimentando teorias cada vez mais extravagantes nas redes sociais.
Meu celular vibrou com uma notificação do grupo da universidade. Era uma mensagem de uma colega do último ano:
"Estamos organizando um grupo de apoio psicológico online para mulheres em crise. Precisamos de voluntárias que possam oferecer escuta qualificada, mesmo que por períodos curtos. Quem puder ajudar, responda aqui."
Mostrei a mensagem a Leandro.
— Acho que vou me voluntariar, — disse, sentindo uma determinação crescer dentro de mim. —Posso não estar em condições de sair de casa, mas posso oferecer suporte online.
Ele me olhou com uma mistura de preocupação e admiração.
— Tem certeza? Você também está passando por isso.
— Justamente, — respondi, já digitando minha resposta. — Quem melhor para entender o que essas mulheres estão sentindo do que alguém que está vivenciando a mesma coisa? Além disso...— hesitei, buscando as palavras certas. — Além disso, acho que precisamos começar a documentar isso. Do ponto de vista psicológico, sociológico, histórico. É um evento sem precedentes, e alguém precisa registrar como está afetando a psique coletiva.
Leandro assentiu lentamente, compreendendo. Era uma das coisas que mais amava nele – sua capacidade de entender minha necessidade de transformar experiências, mesmo as dolorosas, em conhecimento, em algo que pudesse beneficiar outros.
— Se é isso que você quer fazer, vou te apoiar, — disse simplesmente. — Só prometa que vai descansar quando precisar, e não vai se sobrecarregar.
Prometi, embora já soubesse, no fundo, que provavelmente quebraria essa promessa nos dias que viriam. Havia algo despertando dentro de mim – um senso de propósito, de responsabilidade, de conexão com algo maior que eu mesma. Como se meu corpo e minha mente, finalmente sincronizados não apenas com meu próprio ser, mas com bilhões de outras mulheres ao redor do mundo, estivessem me impelindo a agir, a testemunhar, a participar ativamente deste momento histórico.
A campainha tocou, interrompendo meus pensamentos. Era meu pai, carregando sacolas de farmácia e supermercado. Seu rosto normalmente sereno estava tenso, preocupado.
— Consegui alguns analgésicos e absorventes, — disse, colocando as sacolas na mesa. — Tive que ir a cinco farmácias diferentes, e mesmo assim só consegui porque um farmacêutico me reconheceu da universidade.
Abraçou-me cuidadosamente, seus olhos examinando meu rosto pálido.
— Como está se sentindo, filha?
— Sobrevivendo, — respondi, tentando sorrir. — Como está lá fora?
Ele balançou a cabeça, um gesto que falava volumes.
— Nunca vi nada parecido. Filas enormes em farmácias, supermercados com prateleiras vazias, mulheres desmaiando nas ruas... É como se a cidade inteira estivesse em estado de choque.
Sentamos todos na sala, assistindo às notícias enquanto meu pai desempacotava os suprimentos que conseguira. A cobertura agora mostrava manifestações espontâneas em várias cidades – mulheres, muitas visivelmente em dor, marchando com cartazes que exigiam respostas, soluções, reconhecimento.
— É fascinante, do ponto de vista sociológico, — comentou meu pai, o acadêmico nele emergindo mesmo em meio à crise. — Como um evento biológico pode catalisar uma resposta social tão imediata e organizada.
— É mais que sociológico, — respondi, sentindo uma clareza que contrastava com a névoa de dor que ainda envolvia meu corpo. — É político. O corpo feminino sempre foi um campo de batalha político, mas agora... agora é impossível ignorar, impossível medicalizar individualmente, impossível silenciar.
Meu pai me olhou com uma mistura de surpresa e orgulho.
— Você sempre teve essa capacidade de ver além do imediato, de conectar o pessoal ao político.
Dei de ombros, um pouco embaraçada pelo elogio.
— É só a formação em psicologia social.
— É mais que isso, — insistiu ele. — É intuição, é empatia, é a capacidade de sentir o pulso do momento histórico.
Antes que pudesse responder, meu celular vibrou com uma notificação. Era uma mensagem da coordenadora do grupo de apoio psicológico que eu havia acabado de me juntar:
"Lorena, poderia começar um turno de escuta às 20h? Temos muitas mulheres em crise precisando de suporte imediato."
Respondi afirmativamente, sentindo uma mistura de apreensão e determinação. Não tinha certeza se estava preparada para oferecer suporte a outras quando eu mesma ainda estava processando o que estava acontecendo, mas algo dentro de mim – aquela mesma intuição que meu pai havia mencionado – dizia que este era meu papel, minha contribuição neste momento extraordinário.
Enquanto me preparava para o turno de escuta, organizando meu espaço, buscando materiais de referência sobre trauma e crise, senti uma estranha calma se instalar. A dor física continuava, o sangramento não havia diminuído, mas minha mente estava clara, focada, como se tivesse encontrado um propósito em meio ao caos.
Olhei pela janela para o céu noturno de Salvador, com algumas estrelas que pareciam indiferentes ao drama humano que se desenrolava abaixo delas. Em algum lugar lá fora, bilhões de mulheres estavam experimentando o mesmo que eu – a mesma dor, o mesmo sangramento, a mesma confusão, o mesmo medo. Mas também, talvez, a mesma clareza, o mesmo despertar, a mesma conexão com algo maior que transcendia fronteiras, culturas, classes sociais.
Os sinais do corpo haviam se tornado um coro global, impossível de ignorar. E eu, uma estudante de psicologia, filha, namorada, mulher, estava determinada a não apenas ouvir esse coro, mas a amplificá-lo, a interpretá-lo, a transformá-lo em algo que pudesse catalisar mudanças reais e duradouras.
A dor era o preço da participação neste momento histórico. E eu estava disposta a pagá-lo.
***
Os três dias seguintes se fundiram em uma névoa de dor, exaustão e uma estranha clareza que emergia nos momentos de trégua. O mundo lá fora continuava em convulsão, enquanto eu alternava entre períodos de sono inquieto e horas de vigília febril, absorvendo notícias, participando de grupos de apoio online e documentando meticulosamente tudo o que estava acontecendo.
Meu pai conseguiu voltar para casa no final daquele primeiro dia, trazendo mais suprimentos e notícias do campus universitário. Como professor de Filosofia, ele havia testemunhado o caos nas salas de aula – alunas desmaiando durante as aulas, professoras incapazes de continuar lecionando, corredores transformados em enfermarias improvisadas. A universidade havia finalmente decidido suspender todas as atividades por pelo menos uma semana, uma decisão sem precedentes fora de períodos de greve ou desastres naturais.
— É fascinante, do ponto de vista filosófico, — ele comentou enquanto preparava um jantar leve para nós três – Leandro havia decidido ficar, dormindo no sofá da sala. — Estamos testemunhando uma ruptura fundamental na realidade do cotidiano. O corpo, tradicionalmente contido no particular, invadiu violentamente o espaço público.
Em qualquer outro momento, eu teria mergulhado nessa discussão com entusiasmo. A intersecção entre filosofia e psicologia sempre me fascinara, especialmente as questões sobre corporeidade e consciência. Mas naquele momento, a teoria parecia distante demais da realidade visceral que estávamos vivendo.
— Pai, — interrompi suavemente, — acho que estamos além de uma simples ruptura. Agora, isso é biologia, política, economia... tudo ao mesmo tempo.
Ele me olhou com uma mistura de surpresa e orgulho.
— Você está certa, é claro. Perdoe o velho professor por se refugiar na abstração. É mais confortável do que enfrentar...— ele gesticulou vagamente, — tudo isso.
Minha mãe chegou em casa por volta das duas da manhã, após um plantão de quase vinte horas. Seu rosto normalmente composto estava marcado pelo cansaço e algo mais – um tipo de choque que eu nunca havia visto nela antes. Dra. Cláudia Oliveira Viana, diretora clínica respeitada, mulher que já enfrentara epidemias, desastres e crises hospitalares, parecia fundamentalmente abalada.
— Dezessete mortes só no nosso hospital, — ela disse em voz baixa, depois de tomar um banho e se juntar a nós na cozinha para uma refeição tardia. — Mulheres com endometriose severa, miomas não diagnosticados, condições pré-existentes que foram exacerbadas pela intensidade dos sintomas. E os casos de desidratação severa, choque hipovolêmico...
Ela parou, esfregando os olhos.
— Desculpem. Não deveria estar falando disso.
— Não, por favor, — insisti. — Precisamos saber o que está acontecendo. A mídia está filtrando informações, tentando evitar pânico.
Minha mãe me estudou por um momento, como se avaliando minha capacidade de lidar com a verdade. Finalmente, assentiu.
— Os hospitais estão em colapso. Não apenas pela quantidade de pacientes, mas porque metade da equipe médica e de enfermagem também está incapacitada. Estamos priorizando casos críticos, mas não temos leitos, equipamentos ou pessoal suficientes. O governo está mobilizando o exército para montar hospitais de campanha, mas vai levar tempo.
Ela tomou um gole de chá antes de continuar.
— E não é só a questão médica. A infraestrutura está começando a falhar. Transporte público reduzido porque motoristas e cobradores não têm quem cuide de suas esposas, filhas, mães. Escolas fechadas porque professoras não podem trabalhar. Supermercados com prateleiras vazias porque a cadeia de distribuição está comprometida.
— É como se estivéssemos vendo, em tempo real, o quanto o trabalho feminino sustenta a sociedade, — comentou meu pai, pensativo.
— E o quanto o corpo feminino sempre foi tratado como um inconveniente a ser gerenciado individualmente, em silêncio, — acrescentei, sentindo uma indignação crescente. — Agora que é coletivo, agora que afeta a economia, de repente é uma emergência nacional.
Minha mãe sorriu cansada. — Sempre a analista social, não é, filha? Mesmo em meio à crise.
Dei de ombros, um pouco embaraçada. — É como processo as coisas, você sabe disso.
— Eu sei ,— ela estendeu a mão sobre a mesa, apertando a minha brevemente. — E você está certa. Já ouvi médicos homens no hospital sugerindo sedação em massa para 'controlar a histeria feminina'. Como se isso fosse uma reação psicológica e não uma realidade biológica.
A conversa continuou até tarde, cada um de nós processando o evento através de nossas próprias lentes – minha mãe pela perspectiva médica, meu pai pela filosófica, eu pela psicológica, e Leandro, que se juntou a nós depois de acordar com nossas vozes, pela visão pragmática de quem queria ajudar de alguma forma concreta.
Foi ele quem sugeriu, enquanto ajudava a limpar a cozinha, que deveríamos criar algum tipo de sistema de apoio para o prédio.
— Tem várias mulheres idosas morando sozinhas aqui. E famílias onde a mãe é a única adulta. Poderíamos organizar um grupo para verificar quem precisa de ajuda, comprar suprimentos, essas coisas.
A ideia pegou. No dia seguinte, enquanto meus sintomas começavam a diminuir ligeiramente – ainda dolorosos, mas gerenciáveis – ajudei Leandro a criar um grupo de WhatsApp para o prédio e a distribuir folhetos nas portas, oferecendo assistência. A resposta foi imediata e comovente. Vizinhos que mal se cumprimentavam no elevador começaram a se organizar em escalas de apoio. Homens se ofereceram para fazer compras e buscar medicamentos. Mulheres na menopausa se disponibilizaram para cuidar de crianças cujas mães estavam incapacitadas.
Era um microcosmo do que começava a acontecer em toda a cidade, em todo o país, em todo o mundo. Em meio ao caos e ao sofrimento, vínculos comunitários estavam sendo forjados, sistemas de apoio improvisados surgiam organicamente. Era como se a Sincronia, ao nos tornar coletivamente vulneráveis, também nos lembrasse de nossa interdependência fundamental.
No terceiro dia, quando finalmente consegui tomar um banho sem sentir que ia desmaiar de dor, decidi que precisava fazer mais. O grupo de suporte psicológico online que eu havia me juntado estava sobrecarregado – centenas de mulheres buscando não apenas alívio para sintomas físicos, mas um espaço para processar o trauma coletivo que estávamos vivendo.
— Acho que vou começar um diário de pesquisa sobre a Sincronia, — disse a Leandro, que estava trabalhando em seu laptop na mesa da sala. Ele havia conseguido trazer algumas roupas e seu equipamento de trabalho para o apartamento dos meus pais, estabelecendo um escritório improvisado. — Algo mais estruturado que minhas anotações atuais. Uma documentação sistemática dos aspectos psicológicos e sociais.
Ele olhou para mim, um sorriso se formando lentamente.
— Transformando a crise em objeto de estudo? Típico de você.
— É mais que isso, — respondi, sentando-me cuidadosamente ao seu lado. — Sinto que estamos vivendo um momento histórico, algo que vai mudar fundamentalmente como a sociedade funciona. Alguém precisa registrar isso, não apenas os fatos, mas como está afetando as pessoas, como estão respondendo, que novos padrões estão emergindo.
— Você está certa. E acho que posso ajudar com isso.
— Como?
— Sou designer, certo? Posso criar visualizações de dados, infográficos, mapear padrões visualmente. Transformar suas observações em algo que as pessoas possam compreender intuitivamente.
A ideia me eletrizou. Era perfeito – minha análise psicológica combinada com seu talento visual. — Um atlas da Sincronia, — murmurei, já imaginando as possibilidades.
— Exatamente, — ele sorriu, aquele sorriso que sempre me fazia lembrar por que me apaixonei por ele – cheio de entusiasmo genuíno, de possibilidades. — Podemos começar com Salvador, documentar como diferentes bairros estão sendo afetados, que tipos de resposta comunitária estão surgindo, onde estão os pontos de tensão.
Passamos as horas seguintes esboçando o projeto, eu delineando as categorias de análise, ele pensando em formas de visualização. Era bom ter algo em que focar além da dor, algo que dava propósito ao caos que estávamos vivendo.
Meu celular vibrou com uma notificação – uma mensagem de Juliana no grupo da universidade:
"Pessoal, estamos organizando uma reunião online hoje à noite para discutir como podemos usar nosso conhecimento em psicologia para ajudar durante a crise. Professores e alunos, todos bem-vindos. Link na bio."
Mostrei a mensagem a Leandro.
— Vou participar. Pode ser uma boa oportunidade para recrutar mais pessoas para nosso projeto de documentação.
Ele assentiu, mas notei uma hesitação em seus olhos.
— Só... cuide-se, ok? Você ainda está se recuperando.
— Estou melhor, — assegurei, embora uma pontada de dor me lembrasse que meu corpo ainda estava em revolta. — E isso é importante.
A reunião online naquela noite reuniu quase cem pessoas – professores, alunos de graduação e pós, alguns profissionais já formados. A maioria eram mulheres, muitas visivelmente ainda sofrendo com sintomas, mas determinadas a contribuir de alguma forma. O Dr. Maurício, meu orientador, conduzia a sessão com a mesma precisão analítica que demonstrava em suas aulas, mas havia uma nova urgência em sua voz.
— O que estamos enfrentando é sem precedentes na história moderna, — ele começou. — Não apenas como crise de saúde pública, mas como fenômeno psicossocial. Como psicólogos e estudantes de psicologia, temos uma responsabilidade única neste momento.
A discussão que se seguiu foi intensa e multifacetada. Alguns defendiam a criação imediata de linhas de apoio psicológico para mulheres em crise. Outros argumentavam pela necessidade de pesquisa sistemática, de documentação, de análise dos impactos a longo prazo. Alguns focavam nos aspectos clínicos – trauma, estresse agudo, manejo da dor. Outros, nos aspectos sociais – mudanças nas dinâmicas familiares, impactos econômicos, respostas comunitárias.
Quando chegou minha vez de falar, apresentei brevemente a ideia do projeto de documentação que Leandro e eu havíamos começado.
— Precisamos capturar este momento não apenas em números e estatísticas, mas em experiências vividas, em respostas comunitárias, em transformações sociais em tempo real.
A resposta foi entusiástica. Vários colegas se ofereceram para contribuir, cada um a partir de sua área de especialização ou interesse. Uma doutoranda em neuropsicologia queria analisar os impactos cognitivos da dor crônica em escala populacional. Um professor de psicologia social propôs mapear as novas formas de organização comunitária que estavam surgindo. Uma colega do quarto ano sugeriu um estudo comparativo entre diferentes classes sociais e como a Sincronia afetava cada uma.
Ao final da reunião, tínhamos um grupo de trabalho formado, com reuniões semanais agendadas e um plano inicial de pesquisa. Dr. Maurício, impressionado com a iniciativa, ofereceu orientação formal e acesso aos recursos da universidade.
— Lorena, — ele me chamou em um chat privado antes de encerrarmos, — gostaria de conversar mais sobre seu projeto. Tem potencial para se tornar não apenas uma pesquisa, mas um documento histórico importante. Poderia ser sua tese de conclusão de curso, com as devidas adaptações metodológicas.
Senti uma onda de gratidão e validação.
— Seria uma honra, professor. Acredito realmente que isso é importante.
— É mais que importante, — ele respondeu, sua voz normalmente contida traindo uma emoção incomum. — É necessário. A história é frequentemente escrita pelos vencedores, pelos poderosos. Precisamos garantir que este momento seja documentado a partir das experiências daquelas que o estão vivendo mais intensamente.
Após a reunião, fiquei acordada até tarde, organizando notas, estruturando o projeto, listando perguntas de pesquisa. A dor continuava presente, um lembrete constante da realidade biológica que havia desencadeado tudo isso, mas agora era acompanhada por um senso de propósito, de direção.
Leandro, que havia esperado pacientemente que eu terminasse a reunião, trouxe-me um chá e sentou-se ao meu lado na cama, observando as páginas e páginas de anotações que eu havia feito.
— Parece que o projeto ganhou vida própria, — comentou, sorrindo.
— É maior do que imaginávamos, — concordei, recostando-me nos travesseiros. — Não é apenas sobre documentar o que está acontecendo agora. É sobre capturar o nascimento de algo novo – novas formas de organização social, novas consciências políticas, novas relações com nossos próprios corpos.
Ele me estudou por um momento, uma expressão curiosa em seu rosto.
— Você mudou, — disse finalmente. — Em apenas alguns dias.
— Como assim?
— Há uma... intensidade em você agora. Uma clareza. Como se algo tivesse despertado.
Refleti sobre suas palavras, percebendo que ele estava certo. Algo havia mudado em mim, algo fundamental. A dor, o medo, a confusão inicial haviam se transformado em uma determinação ardente, uma necessidade de compreender, de documentar, de participar ativamente deste momento histórico.
— Acho que a Sincronia nos forçou a todos a acordar, — respondi finalmente. — A ver coisas que sempre estiveram lá, mas que podíamos ignorar quando eram problemas individuais, privados.
— Como o quê?
—Como o fato de que construímos toda uma sociedade fingindo que metade da população não sangra regularmente. Como medicalizamos e patologizamos algo que é parte natural da biologia feminina. Como esperamos que as mulheres suportem dor e desconforto em silêncio, sem interromper suas responsabilidades de cuidado, de trabalho, de existência social.
Leandro assentiu lentamente. — Nunca tinha pensado nisso dessa forma.
— Poucos pensam, — sorri, sem ressentimento. — Não é culpa sua. É como o sistema foi projetado – para tornar invisível o que é inconveniente, para individualizar o que é estrutural.
Ficamos em silêncio por alguns momentos, cada um absorvido em seus próprios pensamentos. Lá fora, a noite de Salvador estava estranhamente silenciosa – menos carros, menos música, menos o burburinho habitual da cidade que nunca dorme. Era como se o mundo estivesse contendo a respiração, esperando para ver o que viria a seguir.
— Sabe o que é mais estranho? — disse finalmente. — Sinto como se estivesse vivendo simultaneamente a pior e a mais significativa experiência da minha vida. A dor é terrível, o medo é real, mas também há essa... clareza. Como se um véu tivesse sido removido.
Leandro pegou minha mão, seus dedos entrelaçando-se com os meus.
— Acho que entendo. É como uma tempestade que destrói estruturas, mas também limpa o ar.
— Exatamente, — apertei sua mão, grata por sua compreensão. — E agora temos que decidir o que construir nas ruínas.
Na manhã seguinte, acordei com o som de meu pai conversando animadamente ao telefone. Levantei-me cuidadosamente – a dor havia diminuído consideravelmente, embora o sangramento continuasse – e fui até a cozinha, onde ele gesticulava enquanto falava.
— Sim, sim, entendo a preocupação com precedentes, mas estamos claramente em território inexplorado aqui... Não, não estou sugerindo abandonar completamente o currículo, apenas adaptá-lo às circunstâncias... Bem, se a alternativa é manter tudo fechado indefinidamente...
Quando me viu, fez um gesto de desculpas e apontou para o telefone, articulando silenciosamente "reitor". Assenti e comecei a preparar café, ouvindo com um ouvido enquanto ele continuava a argumentar por algum tipo de reestruturação acadêmica em resposta à crise.
Minha mãe entrou na cozinha pouco depois, já vestida para o hospital, embora suas olheiras profundas indicassem que não havia dormido o suficiente.
— Como está se sentindo? — perguntou, colocando a mão em minha testa num gesto automático de verificação médica.
— Melhor, — respondi honestamente. — A dor está mais gerenciável. O sangramento ainda é intenso, mas não como antes.
Ela assentiu, satisfeita. — Estamos vendo padrões semelhantes em outras pacientes. Parece que os sintomas mais intensos duram cerca de três a quatro dias, depois começam a diminuir gradualmente. Claro, para mulheres com condições pré-existentes, o quadro pode ser diferente.
— E você? Como está?
Um suspiro cansado.
— Sobrevivendo. Os analgésicos prescritos estão funcionando razoavelmente bem, e tenho a vantagem de poder me automedicar quando necessário. — Ela hesitou. — Mas não é apenas o físico, Lorena. É o emocional também. Ver tantas mulheres sofrendo, algumas morrendo, e não poder fazer o suficiente...
Sua voz falhou, algo raro para minha mãe sempre composta. Abracei-a impulsivamente, sentindo seu corpo tenso relaxar ligeiramente contra o meu.
—Você está fazendo o que pode,— murmurei. —Ninguém poderia estar preparado para isso.
Ela se afastou, recompondo-se visivelmente.
— Sim, bem, temos que seguir em frente, não é? Há pacientes esperando.
Enquanto ela tomava café rapidamente, meu pai finalmente encerrou sua ligação, parecendo simultaneamente exausto e animado.
— Boas notícias, — anunciou. — A universidade vai reabrir parcialmente na próxima semana, com um modelo híbrido. Aulas online para quem não pode comparecer presencialmente, horários flexíveis, e uma completa reestruturação do calendário acadêmico.
— Isso é... surpreendentemente progressista para a burocracia universitária, — comentei, genuinamente impressionada.
Meu pai riu. — Necessidade é a mãe da inovação. Ou neste caso, talvez a menstruação seja a mãe da inovação institucional. — Seu sorriso desapareceu, substituído por uma expressão mais séria. — Na verdade, é fascinante observar como instituições que resistiram por décadas a mudanças que beneficiariam mulheres – horários flexíveis, trabalho remoto, políticas de licença médica sem burocracia – estão implementando essas mesmas mudanças em questão de dias agora que a crise afeta a produtividade geral.
— Não é fascinante, é revoltante, — respondeu minha mãe secamente, colocando sua xícara na pia. — Mas vamos aceitar as vitórias onde pudermos encontrá-las. Preciso ir. Há uma reunião de emergência com o secretário de saúde esta manhã.
Após sua saída, meu pai e eu continuamos conversando sobre as mudanças que começavam a se manifestar em várias instituições. A flexibilização do trabalho e do estudo era apenas o começo. Governos estavam implementando distribuição emergencial de absorventes e analgésicos. Empresas farmacêuticas haviam sido pressionadas a liberar patentes de medicamentos para dor menstrual. Leis estavam sendo propostas para garantir que mulheres não fossem demitidas por ausências relacionadas à Sincronia.
— É como se estivéssemos testemunhando uma revolução acelerada, — comentou meu pai. — Mudanças que normalmente levariam décadas de ativismo e negociação política acontecendo em dias.
— Porque agora é impossível individualizar o problema,— respondi, pensativa. —Quando é uma mulher sentindo dor, é um problema dela. Quando são todas as mulheres simultaneamente, torna-se um problema estrutural que não pode ser ignorado.
Leandro juntou-se a nós pouco depois, trazendo seu laptop. Havia passado a manhã pesquisando e compilando dados sobre a Sincronia, preparando-se para nosso projeto de documentação.
— Olhem isso, — disse, mostrando-nos uma série de gráficos que havia criado. — Estou mapeando diferentes respostas à crise por região, classe social, estrutura familiar. Já estão emergindo padrões interessantes.
Os gráficos eram impressionantes – visualmente claros, informativos, com um design que tornava dados complexos imediatamente compreensíveis. Um deles mostrava como bairros de diferentes classes sociais em Salvador estavam respondendo à crise – áreas mais ricas com mais recursos médicos privados mas menos coesão comunitária, áreas mais pobres com menos acesso a cuidados formais mas redes de apoio mútuo mais robustas.
— Isso é incrível, Leandro, — disse, genuinamente impressionada. — Você conseguiu capturar exatamente o tipo de dinâmica social que quero documentar.
Ele sorriu, claramente satisfeito com o elogio. — Estou pensando em criar uma plataforma online onde possamos compartilhar esses dados em tempo real. Um mapa vivo da Sincronia e suas consequências.
— Um 'Mapa Vermelho' ,— sugeri, a ideia formando-se enquanto falava. —Não apenas para documentar, mas para conectar – pessoas oferecendo ajuda, pessoas precisando de recursos, iniciativas comunitárias surgindo.
Os olhos de Leandro se iluminaram com aquela expressão que eu conhecia bem – a de um designer vislumbrando possibilidades.
— Sim! Poderíamos usar geolocalização, categorias por tipo de necessidade ou oferta, um sistema de verificação para evitar abusos...
Meu pai observava nossa troca com um sorriso.
— Vocês dois são impressionantes, sabem disso? Em meio a tudo isso, já estão pensando em como transformar a crise em algo construtivo.
Dei de ombros, um pouco embaraçada.
— É como lidamos com o caos, acho. Eu teorizo, Leandro visualiza.
— E juntos, vocês criam ferramentas para navegar o desconhecido, — completou meu pai, com aquele tom professoral que sempre usava quando estava particularmente orgulhoso. — É exatamente o que o mundo precisa agora.
Passamos o resto do dia desenvolvendo o conceito do Mapa Vermelho, eu focando na estrutura conceitual e nas categorias de análise, Leandro no design e na arquitetura técnica. Meu pai, entusiasmado com o projeto, ofereceu-se para conectar-nos com colegas do departamento de Ciência da Computação que poderiam ajudar com a implementação técnica.
À medida que trabalhávamos, sentia a dor física recuando para o fundo da minha consciência, substituída por um senso crescente de propósito e possibilidade. Era como se a Sincronia, ao nos forçar a confrontar nossa vulnerabilidade coletiva, também tivesse aberto espaço para novas formas de conexão, de solidariedade, de criação conjunta.
No final da tarde, recebi uma mensagem de Juliana:
— Lo, estamos organizando uma reunião presencial amanhã para quem estiver se sentindo bem o suficiente. Na casa da Professora Helena. Queremos discutir ações concretas além do suporte psicológico. Algumas de nós estão pensando em formas de pressão política, manifestações, esse tipo de coisa. Você viria?
A mensagem me pegou de surpresa. Até então, havia pensado principalmente em documentação, análise, suporte – abordagens acadêmicas e terapêuticas para a crise. A ideia de ação política direta não havia realmente cruzado minha mente. Mas fazia sentido, é claro. A Sincronia não era apenas um fenômeno biológico ou psicológico – era profundamente político em suas implicações e consequências.
Mostrei a mensagem a Leandro, que franziu o cenho ligeiramente. — Manifestações? No meio de uma crise de saúde pública? Não sei se é uma boa ideia, Lo.
— Por que não? — perguntei, genuinamente curiosa sobre sua hesitação.
— Bem, para começar, muitas mulheres ainda estão fisicamente debilitadas. E há o risco de aglomerações durante uma situação já caótica. Sem falar que pode ser visto como oportunismo político em um momento de vulnerabilidade.
Considerei seus pontos, que eram válidos. Mas algo dentro de mim resistia à ideia de que deveríamos apenas documentar e oferecer suporte, sem exigir mudanças estruturais.
— Entendo suas preocupações, — disse finalmente. — Mas também acho que este é exatamente o momento para pressionar por mudanças. Quando o status quo já está desestabilizado, quando as contradições e injustiças do sistema estão expostas para todos verem.
Leandro me estudou por um momento, sua expressão ilegível. — Você realmente mudou, — disse finalmente, sem julgamento, apenas constatação.
— O mundo mudou, — respondi simplesmente. — Estou apenas respondendo a isso.
Respondi a Juliana que estaria presente na reunião, sentindo uma mistura de ansiedade e determinação. Não sabia exatamente o que esperar, ou que papel eu poderia desempenhar em qualquer ação política que surgisse. Mas sabia que precisava estar lá, precisava participar ativamente deste momento de transformação.
Naquela noite, enquanto me preparava para dormir, meu celular vibrou com uma notificação de notícia:
"CIENTISTAS CONFIRMAM: SINCRONIA MENSTRUAL GLOBAL DEVE SE REPETIR MENSALMENTE POR PERÍODO INDETERMINADO"
O título me atingiu como um soco no estômago. Cliquei na notícia, lendo avidamente sobre como pesquisadores de vários países, analisando dados preliminares e padrões hormonais, haviam chegado à conclusão de que o fenômeno não era um evento isolado. A sincronização havia alterado fundamentalmente o ciclo menstrual feminino em escala global, e todas as evidências indicavam que se repetiria no próximo mês, e nos seguintes.
Não era uma anomalia passageira. Era uma nova realidade.
Fiquei olhando para a tela, tentando processar as implicações. Se a Sincronia continuasse, mês após mês, as mudanças sociais, econômicas e políticas que já estávamos vendo seriam apenas o começo. Teríamos que reestruturar fundamentalmente como a sociedade funcionava – sistemas de trabalho, educação, saúde, transporte, tudo teria que ser repensado para acomodar esta nova realidade biológica.
E com essa reestruturação viria inevitavelmente luta e resistência. Aqueles que se beneficiavam do status quo não cederiam poder e privilégio facilmente. Já podíamos ver os primeiros sinais – políticos conservadores propondo "campos de isolamento" para mulheres durante o período, empresas ameaçando demitir funcionárias que não pudessem trabalhar, teorias da conspiração culpando feministas radicais ou potências estrangeiras pelo fenômeno.
A reunião de amanhã com Juliana e as outras não seria apenas sobre manifestações pontuais. Seria o início de algo maior, mais duradouro – um movimento de resistência contra aqueles que tentariam usar a Sincronia para controlar ainda mais os corpos e as vidas das mulheres.
Deitei-me na cama, sentindo o peso dessa realização. Os sinais do corpo haviam se transformado em sinais dos tempos, prenunciando uma era de conflito e transformação. E agora eu, uma estudante de psicologia de vinte e três anos, estava sendo arrastada para o centro dessa tempestade histórica.
A última coisa que pensei antes de adormecer foi que precisava contar a Leandro sobre a notícia, sobre a permanência da Sincronia. Mas algo me deteve – uma intuição de que sua reação poderia não ser a mesma que a minha, de que estávamos começando a divergir em nossas visões sobre como responder a esta nova realidade.
O sono veio, inquieto e povoado por sonhos de marés vermelhas e multidões marchando, de mapas que se transformavam em manifestos, de corpos que se tornavam barricadas. E em todos esses sonhos, eu estava simultaneamente observando e participando, documentando e agindo, analisando e sentindo – dividida entre a acadêmica e a ativista, entre a mente e o corpo, entre o pessoal e o político.
Quando acordei na manhã seguinte, algo havia se solidificado dentro de mim – uma resolução, uma clareza de propósito. Os sinais do corpo haviam falado, e eu havia finalmente aprendido a escutá-los. Não apenas os meus, mas os de todas nós, unidos em um coro impossível de ignorar.
***
Na manhã do quinto dia após o início da Sincronia, acordei com uma sensação estranha – a ausência quase completa da dor que havia sido minha companheira constante nos últimos dias. O sangramento continuava, mas havia diminuído consideravelmente, e a cólica que me dobrara ao meio era agora apenas um incômodo distante, como o eco de um trovão após a tempestade passar.
Fiquei deitada por alguns minutos, observando a luz do sol filtrar-se pelas cortinas, criando padrões dançantes no teto. Havia algo profundamente surreal em sentir-me quase normal enquanto o mundo lá fora continuava em convulsão. Era como emergir de um mergulho profundo, ofegante e desorientada, para descobrir que a superfície também estava em turbulência.
Meu celular vibrou na mesa de cabeceira, uma notificação do grupo de pesquisa que havíamos formado na noite anterior. Dr. Maurício havia enviado um e-mail detalhado com propostas metodológicas, divisão de tarefas e um cronograma preliminar. Sua eficiência, mesmo em meio à crise, era impressionante. A última linha do e-mail me fez sorrir:
— Lorena, considerando seu papel central na concepção deste projeto, gostaria de propor que você coordene o grupo de documentação psicossocial. Sua visão integrativa e capacidade analítica serão fundamentais para dar coerência ao trabalho coletivo.
Coordenar um grupo de pesquisa no terceiro ano da graduação era uma responsabilidade incomum, quase sem precedentes. Em circunstâncias normais, eu teria hesitado, questionado se estava à altura, pedido tempo para considerar. Mas nada era normal agora, e a pessoa que eu era cinco dias atrás – cautelosa, sempre buscando validação externa, preocupada com hierarquias acadêmicas – parecia ter sido varrida pela maré vermelha da Sincronia.
Respondi imediatamente, aceitando a posição e propondo nossa primeira reunião formal para o dia seguinte. Enquanto digitava, sentia uma estranha mistura de empolgação e solenidade. Estávamos documentando não apenas um fenômeno biológico inexplicável, mas o nascimento de uma nova era – um momento de ruptura histórica cujas consequências se desdobrariam por gerações.
Levantei-me e fui até a janela, abrindo as cortinas para contemplar a vista do parque da cidade. Salvador parecia estranhamente quieta para uma manhã de sexta-feira. O trânsito, normalmente intenso àquela hora, era esparso. Poucos pedestres caminhavam pelas calçadas, a maioria homens. Era como se a cidade estivesse parcialmente esvaziada, ou como se metade de sua população tivesse simplesmente desaparecido – o que, em certo sentido, era verdade. Milhões de mulheres ainda estavam confinadas em suas casas, recuperando-se, adaptando-se, processando o que havia acontecido com seus corpos e com o mundo.
Meu pai havia saído cedo para uma reunião emergencial na universidade, e minha mãe provavelmente já estava no hospital há horas. Leandro dormia no sofá da sala, exausto após passar a madrugada trabalhando nos primeiros protótipos visuais para nosso projeto. Decidi não acordá-lo e preparei café silenciosamente, levando uma xícara para o meu quarto.
Sentei-me à escrivaninha e abri meu laptop, decidida a organizar minhas anotações caóticas dos últimos dias em algo mais estruturado. Enquanto trabalhava, uma notificação de notícia apareceu:
"GOVERNO ANUNCIA MEDIDAS EMERGENCIAIS PARA ENFRENTAR A 'CRISE VERMELHA'"
Cliquei no link, lendo sobre o pacote de ações que acabara de ser anunciado: distribuição gratuita de absorventes e analgésicos, licença médica automática para mulheres sem necessidade de atestado, flexibilização de prazos para pagamentos de contas e impostos, mobilização das Forças Armadas para garantir abastecimento de itens essenciais, criação de um comitê de crise com especialistas de diversas áreas.
Eram medidas necessárias e bem-vindas, mas algo na linguagem do comunicado me incomodou profundamente. A Sincronia era descrita como uma "anomalia temporária" que seria "controlada e gerenciada" até que a "normalidade" pudesse ser restaurada. Como se fosse um desastre natural a ser superado, e não uma transformação fundamental na realidade biológica e social que exigia uma reestruturação completa de como organizávamos nossa sociedade.
Mais perturbador ainda era a composição do comitê de crise anunciado: doze membros, apenas três mulheres, nenhuma em posição de liderança. Homens decidindo como "gerenciar" uma crise que afetava primariamente corpos femininos. A ironia era tão gritante que seria cômica, se não fosse tão profundamente reveladora das estruturas de poder que permaneciam intactas mesmo quando o mundo estava de cabeça para baixo.
Fiz capturas de tela do comunicado e das biografias dos membros do comitê, adicionando-as à pasta de documentação que estava organizando. Seria importante acompanhar como as respostas institucionais evoluiriam – ou não – à medida que a Sincronia continuasse.
Meu celular tocou – era Juliana.
— Lo, você viu o comunicado do governo? — Sua voz estava tensa, vibrando com uma indignação que eu compartilhava.
— Acabei de ler. Três mulheres em doze membros. Nenhuma na coordenação.
— E todas as três são conhecidas por posições conservadoras, — ela acrescentou. — A Dra. Mendes é famosa por se opor à educação sexual nas escolas, a Secretária Almeida votou contra a ampliação da licença-maternidade no ano passado, e a Professora Gomes... bem, você conhece a reputação dela no departamento de Biologia.
Conhecia, infelizmente. A Professora Gomes era notória por desestimular alunas a seguirem carreira acadêmica, sugerindo que a maternidade eventualmente as afastaria da pesquisa. A ironia de tê-la em um comitê sobre uma crise menstrual global era quase dolorosa.
— Estamos organizando uma resposta, — continuou Juliana. — Um grupo de professoras, pesquisadoras e estudantes de várias universidades. Vamos publicar um manifesto exigindo paridade de gênero no comitê e transparência total nas decisões. Você quer participar da redação?
Hesitei por um momento. Até então, meu foco havia sido documentar, analisar, compreender. Dar um passo em direção ao ativismo explícito significava cruzar uma linha que sempre tentei manter como estudante e pesquisadora em formação – a linha entre observação e participação, entre análise e advocacia.
Mas a voz de Dr. Maurício ecoou em minha mente:
— A história é frequentemente escrita pelos vencedores, pelos poderosos. — Se não participássemos ativamente da construção da narrativa sobre a Sincronia, outros o fariam, outros cujos interesses não necessariamente incluíam o bem-estar e a autonomia das mulheres cujos corpos estavam no centro desta revolução biológica.
— Sim, — respondi finalmente. — Quero participar. Quando começamos?
-— Hoje à tarde, videoconferência às 15h. Vou te mandar o link.
Após desligar, fiquei sentada por alguns minutos, absorvendo a magnitude do que havia acabado de concordar em fazer. Não era apenas um manifesto – era uma declaração de posicionamento, um alinhamento com um lado específico em um conflito que apenas começava a tomar forma. As linhas de batalha estavam sendo traçadas, e eu havia escolhido meu campo.
O som de passos no corredor anunciou que Leandro havia acordado. Ele apareceu na porta do meu quarto, cabelo desgrenhado, olhos ainda pesados de sono, mas com um sorriso caloroso.
— Bom dia, — disse, apoiando-se no batente. — Como está se sentindo?
— Melhor, — respondi, retribuindo o sorriso. — A dor quase desapareceu.
— Isso é ótimo, — ele entrou no quarto, sentando-se na beira da cama. — Estava preocupado. Você dormiu bem?
— Surpreendentemente bem. E você? Vi que ficou trabalhando até tarde.
Ele deu de ombros, um gesto que reconheci como seu modo de minimizar esforços.
— Estava inspirado. Criei alguns protótipos para o Mapa Vermelho. Quero te mostrar depois do café.
Enquanto tomávamos café na cozinha, contei a ele sobre o comunicado do governo e o convite de Juliana para participar da redação do manifesto. Observei atentamente sua reação, incerta sobre como ele receberia meu novo envolvimento político.
— Faz sentido, — disse ele após um momento de reflexão. — Se eles estão montando um comitê para tomar decisões que afetarão principalmente mulheres, o mínimo que poderiam fazer é garantir representatividade adequada.
Senti uma onda de alívio e gratidão. Leandro sempre fora progressista em suas visões, mas havia uma diferença entre apoiar causas em teoria e apoiar o ativismo direto de sua namorada em um momento de crise social.
— Acho que isso pode se integrar bem ao nosso projeto de documentação, — continuei, encorajada por sua resposta positiva. — Podemos acompanhar não apenas os impactos da Sincronia, mas também as respostas institucionais e os movimentos de resistência que surgem.
Ele assentiu, pensativo. — Poderíamos criar uma seção específica no Mapa para isso, rastreando políticas governamentais, protestos, manifestos, esse tipo de coisa. Uma espécie de termômetro político da Sincronia.
Passamos a manhã trabalhando juntos, eu organizando dados e categorias conceituais, ele transformando-os em visualizações claras e impactantes. Era uma colaboração perfeita – minha mente analítica alimentando seu talento visual, criando algo maior que a soma das partes.
Por volta do meio-dia, recebi uma mensagem de minha mãe:
— Estou saindo do hospital agora para uma reunião no Ministério da Saúde. Fui convidada para integrar um grupo técnico consultivo sobre a Sincronia. Parece que o comunicado oficial desta manhã gerou reações negativas suficientes para que decidissem ampliar a representatividade feminina. Conversamos à noite.
Mostrei a mensagem a Leandro, sentindo uma mistura de orgulho e alívio. Minha mãe era exatamente o tipo de especialista que deveria estar envolvida nas decisões – competente, experiente, e com uma compreensão direta tanto dos aspectos médicos quanto das realidades vividas pelas mulheres afetadas.
— Isso é ótimo, — comentou ele. — Talvez o manifesto já esteja tendo efeito antes mesmo de ser publicado.
— Ou talvez tenham percebido o erro político que cometeram, — respondi, menos otimista. — De qualquer forma, é um passo na direção certa.
Às 15h, participei da videoconferência para a redação do manifesto. O grupo era impressionante – professoras renomadas, pesquisadoras de ponta, ativistas experientes, estudantes brilhantes. Mulheres de diferentes idades, raças, classes sociais e áreas de conhecimento, unidas pela experiência compartilhada da Sincronia e pela determinação de garantir que as respostas à crise não perpetuassem as mesmas estruturas de poder que haviam historicamente silenciado e marginalizado as mulheres.
Como estudante de graduação, esperava ter um papel menor, talvez apenas observando e aprendendo. Mas quando mencionei o projeto de documentação que Leandro e eu estávamos desenvolvendo, houve um interesse imediato.
— Isso é exatamente o que precisamos, — disse a Professora Helena, uma socióloga respeitada que liderava o grupo. — Um registro sistemático não apenas dos eventos, mas de como estão sendo interpretados, respondidos, contestados. Lorena, você poderia liderar a seção do manifesto que trata da necessidade de documentação e pesquisa independentes?
Aceitei a tarefa, simultaneamente honrada e intimidada. Nas duas horas seguintes, trabalhamos coletivamente no documento, cada uma contribuindo com sua expertise específica. O resultado final era poderoso – um texto que não apenas criticava a composição do comitê governamental, mas apresentava uma visão alternativa de como a crise deveria ser abordada, centrada nas experiências e necessidades das mulheres, com ênfase em transparência, participação comunitária e pesquisa independente.
O manifesto seria publicado na manhã seguinte, com assinaturas de centenas de mulheres de todo o país. Meu nome estaria entre eles – meu primeiro ato público de posicionamento político.
Quando a reunião terminou, senti-me simultaneamente exausta e energizada. Algo estava mudando não apenas no mundo, mas dentro de mim – uma transformação tão profunda quanto a que ocorrera em meu corpo dias antes. A estudante cautelosa e academicamente distanciada estava dando lugar a alguém mais engajada, mais disposta a tomar posição, mais consciente da impossibilidade de neutralidade em um momento de ruptura histórica.
Leandro percebeu a mudança assim que entrei na sala onde ele continuava trabalhando nos protótipos do Mapa.
— Seus olhos estão diferentes, — comentou, estudando meu rosto. — Há um fogo ali que não estava antes.
Sorri, sentando-me ao seu lado. — É assim que a revolução começa? Com fogo nos olhos de mulheres cansadas?
— Talvez, — ele respondeu, retribuindo o sorriso. — Ou talvez seja assim que começa a cura – quando a dor se transforma em propósito.
Mostrou-me o que havia criado durante a tarde – um protótipo funcional do Mapa Vermelho, com camadas de informação que podiam ser ativadas ou desativadas, visualizações dinâmicas que mostravam a evolução da crise ao longo do tempo, e um sistema para que usuários pudessem contribuir com seus próprios relatos e observações.
— É incrível, Lee, — disse, genuinamente impressionada. — Você conseguiu capturar exatamente o que eu tinha em mente, mas melhor.
— Ainda é só um esqueleto, — ele respondeu, embora seu sorriso revelasse que estava satisfeito com o elogio. — Precisamos de mais dados, mais categorias, mais refinamento. Mas é um começo.
— Um começo, — repeti, a palavra reverberando com significados além do projeto imediato. Um começo para o Mapa, para o manifesto, para meu envolvimento político, para uma nova forma de sociedade emergindo das ruínas da antiga.
Meu celular vibrou com uma notificação – uma mensagem de Mariana, minha irmã em Londres:
— Lo, as coisas estão intensas aqui. Manifestações espontâneas em frente ao Parlamento. Milhares de mulheres, muitas ainda visivelmente em dor. Estou enviando fotos e vídeos. Isso está acontecendo em toda a Europa. Como estão as coisas aí?
As imagens que ela enviou eram impressionantes – multidões de mulheres de todas as idades, algumas carregando cartazes improvisados, outras simplesmente presentes, seus corpos como declarações políticas. "NOSSO SANGUE, NOSSA VOZ", dizia um dos cartazes. "A REVOLUÇÃO SERÁ MENSTRUADA", proclamava outro.
Mostrei as imagens a Leandro, sentindo uma conexão visceral com aquelas mulheres do outro lado do oceano. Estávamos todas vivendo o mesmo momento histórico, nossos corpos sincronizados não apenas biologicamente, mas politicamente.
— Está começando, — murmurei, mais para mim mesma do que para ele.
— O quê?
— A resposta coletiva. Não apenas a solidariedade comunitária que vimos nos primeiros dias, mas algo mais organizado, mais explicitamente político.
Ele estudou as imagens, pensativo.
— Você acha que veremos o mesmo aqui?
— Sem dúvida, — respondi com uma certeza que me surpreendeu. — É apenas uma questão de tempo. À medida que as mulheres se recuperam fisicamente, a raiva e a indignação que foram temporariamente suprimidas pela dor começarão a emergir. E então...
Deixei a frase inacabada, mas Leandro assentiu, compreendendo. Então viria a tempestade – a verdadeira tempestade, não apenas a biológica que já havíamos enfrentado, mas a política, a social, a cultural.
Naquela noite, meus pais chegaram em casa quase simultaneamente, ambos exaustos mas animados. Minha mãe havia passado o dia em reuniões com o novo grupo técnico consultivo, enquanto meu pai participara de discussões sobre a reestruturação do calendário acadêmico e dos métodos de ensino na universidade.
Durante o jantar, compartilharam suas experiências – as resistências que haviam encontrado, as alianças inesperadas que haviam formado, as pequenas vitórias conquistadas. Era fascinante observar como cada um deles navegava as mesmas águas turbulentas a partir de suas posições institucionais específicas – minha mãe como médica em um sistema de saúde em colapso, meu pai como professor em uma estrutura acadêmica rigidamente hierárquica.
— O mais interessante, — comentou minha mãe enquanto servia-se de mais salada, — é ver como instituições que resistiram por décadas a mudanças básicas estão agora implementando transformações radicais em questão de dias. Telemedicina, horários flexíveis, licenças médicas sem burocracia – tudo que sempre disseram ser impossível de implementar.
— O mesmo na universidade, — concordou meu pai. — De repente, aulas online são viáveis, prazos podem ser estendidos, presença física não é mais o único indicador de comprometimento acadêmico.
— Porque agora afeta homens também,— observei. — Não diretamente em seus corpos, mas em suas famílias, seus trabalhos, suas rotinas. A dor feminina sempre foi tratada como um problema individual até que começou a interromper o funcionamento do sistema como um todo.
Meus pais trocaram um olhar que não consegui interpretar completamente – uma mistura de orgulho, preocupação e algo mais, talvez a percepção de que sua filha estava se transformando diante de seus olhos em alguém mais politizada, mais radical do que haviam antecipado.
— Você tem razão, — disse minha mãe finalmente. — E é por isso que este momento é tão importante. Não é apenas sobre sobreviver à crise imediata, mas sobre garantir que as mudanças que estão sendo implementadas por necessidade se tornem permanentes por princípio.
Após o jantar, Leandro e eu nos retiramos para a varanda, observando as luzes da cidade. Salvador parecia diferente – mais silenciosa, mais contida, como se estivesse segurando a respiração. Mas havia também uma tensão no ar, uma energia latente, como a eletricidade antes de uma tempestade.
— No que está pensando? — perguntou ele, notando meu silêncio contemplativo.
— Em como tudo mudou em apenas cinco dias, — respondi. — Não apenas o mundo lá fora, mas aqui dentro.— Toquei meu peito, indicando algo mais profundo que meu corpo físico.
—É como se eu tivesse acordado de um sonho, ou talvez como se tivesse estado acordada pela primeira vez.
Ele assentiu, compreendendo.
— É estranho, não é? Como algo tão biológico, tão físico, pode desencadear transformações tão profundas na consciência.
— Não é estranho, é revelador, — respondi. — Mostra como o pessoal sempre foi político, como o corpo sempre foi um campo de batalha ideológico. A Sincronia apenas tornou visível o que sempre esteve lá, escondido sob camadas de normalização e individualização.
Ficamos em silêncio por alguns momentos, absorvendo a magnitude do que estávamos vivendo. Então, quase como um sussurro, Leandro perguntou:
— Você acha que vai acabar? Que voltaremos ao normal?
A pergunta pairou entre nós, carregada de significados e implicações. O que era "normal" agora? E mesmo que a Sincronia terminasse amanhã, poderíamos realmente voltar ao que éramos antes, individual ou coletivamente?
— Não, — respondi finalmente, com uma certeza que vinha não de conhecimento, mas de intuição profunda. — Mesmo que os ciclos voltem a ser individuais, algo fundamental mudou. Vimos demais, sentimos demais, compreendemos demais para simplesmente voltarmos ao que era antes.
Naquele momento, como se para confirmar minhas palavras, meu celular vibrou com uma notificação de notícia:
"CIENTISTAS CONFIRMAM: SINCRONIA MENSTRUAL GLOBAL DEVE SE REPETIR MENSALMENTE"
Leandro leu a manchete por cima do meu ombro, sua respiração acelerando ligeiramente.
— Isso muda tudo, — murmurou.
— Não, — respondi, uma estranha calma me envolvendo. — Isso apenas confirma o que já sabíamos intuitivamente. Não é um evento isolado, é uma nova realidade. E agora temos que decidir que tipo de mundo construiremos dentro dela.
Voltamos para dentro, cada um absorvido em seus próprios pensamentos. Enquanto Leandro tomava banho, sentei-me na cama e abri meu diário, sentindo necessidade de registrar não apenas os eventos externos, mas minha própria transformação interna.
"Dia 5 da Sincronia," escrevi. "Hoje descobrimos que isso não é temporário. Que nossos corpos continuarão sincronizados, mês após mês, por quanto tempo ninguém sabe. Deveria estar assustada, mas sinto principalmente clareza. Como se um propósito que sempre esteve adormecido dentro de mim tivesse finalmente despertado.
Há uma semana, eu era apenas uma estudante de psicologia, preocupada com seminários e notas, navegando o mundo acadêmico com cautela e deferência. Hoje, sou parte de um movimento nascente, meu nome estará em um manifesto político, estou coordenando um projeto de pesquisa e documentação que pode se tornar historicamente significativo.
A dor física está diminuindo, mas deixou algo em seu lugar – uma consciência aguçada, uma indignação focada, uma determinação que não reconheço de minha vida anterior. É como se a Sincronia tivesse rasgado um véu, revelando não apenas as estruturas de poder que sempre estiveram lá, mas também uma versão de mim que estava esperando para emergir.
Não sei o que virá a seguir. Não sei que tipo de mundo surgirá das convulsões da Sincronia. Mas sei que não serei apenas uma observadora. Serei uma participante, uma documentarista, talvez até uma líder. Os sinais do corpo falaram, e finalmente aprendi a escutá-los – não apenas os meus, mas os de todas nós, unidos em um coro impossível de ignorar."
Fechei o diário e olhei pela janela para o céu noturno de Salvador. As estrelas brilhavam com uma clareza incomum, como se a redução da poluição luminosa devido à diminuição das atividades urbanas tivesse revelado uma beleza que sempre esteve lá, obscurecida pela agitação humana.
Era uma metáfora apropriada para o que estava acontecendo em escala global – a Sincronia havia forçado uma pausa, uma interrupção no ritmo frenético da sociedade moderna, revelando tanto belezas quanto horrores que haviam sido obscurecidos pela normalidade cotidiana.
Leandro voltou do banho, sentando-se ao meu lado na cama.
— No que está pensando? — perguntou, notando minha expressão contemplativa.
— No futuro, — respondi simplesmente. — No que vem a seguir.
Ele pegou minha mão, seus dedos entrelaçando-se com os meus.
— Seja o que for, enfrentaremos juntos.
Assenti, grata por sua presença, por seu apoio, por sua compreensão. Mas uma pequena voz dentro de mim – a mesma que havia despertado com a Sincronia – sussurrava que o caminho à frente poderia não ser tão simples, que as transformações que estavam ocorrendo dentro de mim poderiam eventualmente me levar a lugares onde Leandro não poderia ou não quereria seguir.
Afastei esse pensamento, não querendo confrontá-lo ainda. Por enquanto, era suficiente saber que havíamos sobrevivido à primeira onda da Sincronia, que estávamos criando ferramentas para navegar a nova realidade, que estávamos, cada um à sua maneira, respondendo ao chamado histórico que nos havia sido imposto.
Os sinais do corpo haviam falado, e o mundo nunca mais seria o mesmo. Nem eu.
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