top of page

Capítulo 3 - Plantões e Presságios

  • Foto do escritor: Marcus Vinicius SS
    Marcus Vinicius SS
  • 27 de jun.
  • 23 min de leitura

Meu nome é Eliane Olivia Silva, e aos trinta e dois anos, minha vida se desenrola ao ritmo implacável dos plantões de doze, às vezes dezoito, às vezes vinte e quatro horas, no epicentro da vida e da morte que é o Hospital Universitário Pedro Ernesto. Aqui, no coração pulsante e por vezes caótico de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, sou enfermeira obstetra. Meu apartamento alugado, a poucas quadras daqui, funciona mais como uma estação de reabastecimento rápido – um banho, algumas horas de sono picado, uma refeição engolida às pressas – do que como um verdadeiro lar. A vida real, a que me consome e me define, acontece entre estas paredes que já viram mais lágrimas de alegria e de dor do que posso contar, no cheiro agridoce de antisséptico misturado ao perfume tênue de talco de bebê, no som primordial do primeiro choro que rasga o silêncio da sala de parto.


Sou a irmã mais velha, a âncora de uma família fragmentada pela distância e pelas circunstâncias. Marcos, meu irmão do meio, com seus trinta anos e a coragem estampada no rosto, desafia as chamas e os desabamentos como bombeiro aqui mesmo no Rio. Ele é meu apoio mais próximo, a presença física que me lembra que não estou completamente sozinha nesta selva de pedra. Nossas conversas, geralmente regadas a café forte em alguma padaria de esquina após um plantão meu ou um resgate dele, são bóias de sanidade em meio à turbulência de nossas profissões. Já Leandro, o caçula, meu eterno protegido de vinte e seis anos, vive em Salvador, tecendo sua arte digital como designer freelancer. Nossas chamadas de vídeo semanais são meu portal para a brisa morna da Bahia, para a leveza que ele insiste em manter apesar das dificuldades, um contraponto à densidade da minha rotina carioca. Falamos de tudo e de nada, das saudades dos nossos pais no interior, das preocupações com as contas, dos pequenos triunfos e das grandes angústias. Ele é a linha direta com a Eliane que eu era antes do jaleco branco se tornar minha segunda pele.


Naquela terça-feira específica, três dias antes do eixo do mundo parecer inclinar-se perigosamente, eu estava finalizando um plantão que parecia ter durado uma eternidade. Vinte e quatro horas ininterruptas, cobrindo a ausência de uma colega que sucumbira a uma virose misteriosa que rondava a equipe. O cansaço era uma entidade física, um peso invisível que me curvava os ombros e turvava minha visão. Meus pés, envoltos nos tênis surrados que já moldaram a forma exata do meu sofrimento, protestavam a cada passo enquanto eu atravessava os corredores labirínticos em direção à saída. O sol da manhã, agressivo e indiferente, feria minhas retinas desacostumadas, forçando-me a semicerrar os olhos enquanto buscava a promessa de descanso no meu refúgio particular.


O hospital, com seus murmúrios constantes, seus bipes eletrônicos e o eco fantasmagórico de dores passadas e futuras, ficava para trás como um navio imenso ancorado em um mar de concreto. Eu amava aquele lugar, amava a intensidade crua da obstetrícia, a sensação de ser útil no limiar da existência. Mas o preço era cobrado em doses diárias de exaustão, em relacionamentos adiados, em uma vida pessoal que se resumia a fragmentos roubados entre um plantão e outro. Havia dias em que me sentia uma máquina eficiente, outros em que a empatia me transbordava e eu chorava escondida no banheiro após uma perda ou uma complicação inesperada. Era a dança constante entre a técnica e a humanidade, o fio da navalha sobre o qual eu equilibrava minha sanidade.


Ao subir as escadas do meu prédio – o elevador, em sua crônica indiferença aos dramas humanos, permanecia quebrado –, uma pontada aguda e inesperada no baixo ventre me roubou o fôlego por um instante. Uma cólica? Estranho. Meu ciclo, embora não fosse um primor de regularidade devido a uma leve endometriose diagnosticada anos atrás e nunca devidamente tratada (quem tem tempo?), não costumava se anunciar com tanta veemência e tão fora de época. Ignorei, como sempre. O corpo, para mim, era uma ferramenta a ser controlada, um conjunto de sistemas que precisavam funcionar a serviço da minha vontade e das minhas obrigações. Reclamações eram sinais de fraqueza, e eu não podia me dar a esse luxo.


O silêncio do apartamento me acolheu como um abraço estranho, quase desconfortável após a cacofonia sensorial do hospital. O banho quente foi um ritual de purificação, a água levando embora não apenas a sujeira física, mas também a tensão acumulada, as imagens persistentes de rostos contorcidos, o peso das vidas que passaram por minhas mãos. Ao me olhar no espelho embaçado, notei um inchaço sutil no abdômen, uma sensibilidade nos seios. "Preciso marcar aquela consulta com a Dra. Arantes", pensei, pela milésima vez, a promessa se perdendo novamente na névoa do esgotamento e da procrastinação crônica que aflige tantos profissionais de saúde.


Antes de me render ao chamado da cama, peguei o celular. Uma notificação de Leandro. Abri um sorriso cansado ao ver o meme que ele enviara – algo sobre a relação simbiótica entre designers, café e prazos impossíveis. Era a leveza dele que me ancorava, que me lembrava que havia um mundo para além das paredes do hospital. Disquei seu número, a necessidade de ouvir sua voz superando o desejo de apenas apagar.


— Oi, maninha! Pensei que já estivesse sonhando com anjos ou com protocolos de parto, — ele atendeu, a voz carregada daquele sotaque que o tempo e a distância não conseguiam apagar.


— Quase lá, Lee. Acabei de chegar. Plantão de 24 horas. Estou oficialmente funcionando no modo zumbi, — respondi, a voz rouca de cansaço, enquanto me deixava cair na cama, o colchão protestando sob meu peso.


Nossa conversa fluiu como sempre, um bálsamo para minha alma fatigada. Ele falou do projeto novo, das inseguranças típicas de freelancer, das aulas de Lorena, da saudade dos pais. Eu desabafei sobre a loucura do plantão, sobre um parto gemelar complicado que exigiu toda a minha perícia, sobre a sensação crescente de estar correndo em uma esteira que nunca parava. A distância física se dissolvia na intimidade da nossa conexão fraterna.


— Você parece mais cansada que o normal, Eli, — ele observou, com aquela sensibilidade que sempre me desarma. — Não é só cansaço físico, é?


Hesitei por um instante. Deveria mencionar a sensação estranha, a cólica fora de hora, o pressentimento sutil de que algo estava diferente? Não queria preocupá-lo. Ele já tinha suas próprias batalhas para travar em Salvador.


— Estou mesmo, Lee. Foi puxado. E não sei... estou me sentindo meio esquisita hoje. Um cansaço diferente, uma sensação... ah, deve ser só o estresse acumulado. E notei algumas colegas e pacientes comentando coisas parecidas, dores estranhas, cansaço... Deve ser alguma virose nova circulando, ou talvez o clima maluco do Rio.


Tentei soar casual, desviar o foco. Brincamos sobre apocalipse zumbi, trocamos as juras de amor e cuidado que eram nosso código secreto desde a infância, e desligamos. Mas a semente da inquietação havia sido plantada. Aquela sensação física, a coincidência dos relatos... algo não se encaixava.


Adormeci quase instantaneamente, um sono pesado, sem sonhos, mas acordei horas depois sentindo a mesma pontada incômoda no ventre, agora acompanhada por uma leve náusea. Levantei, bebi um copo d'água, olhei pela janela a cidade que começava a despertar lá fora. O Cristo Redentor, envolto na névoa matinal, parecia um guardião silencioso, alheio às pequenas desordens biológicas que começavam a se manifestar em seus habitantes.


Os dois dias seguintes foram uma repetição daquele padrão incômodo. Mais plantões, mais cansaço, e a persistência daquela sensação física indefinível. A cólica ia e vinha, sutil mas presente. Notei-me mais irritadiça, impaciente com a burocracia hospitalar, com a lentidão dos residentes. No hospital, a tensão era palpável. A emergência ginecológica continuava com um fluxo anormalmente alto de pacientes. Mulheres chegavam pálidas, suando frio, descrevendo dores pélvicas de intensidade inédita, sangramentos que não correspondiam a seus ciclos. Ouviam-se conversas nos corredores, teorias apressadas sobre contaminação da água, efeitos colaterais de vacinas, até mesmo alguma influência solar desconhecida. A normalidade estava se esgarçando, mas ainda tentávamos costurá-la com explicações racionais, com a negação confortável do extraordinário.


Na quinta-feira à noite, durante meu plantão, a represa finalmente rompeu. O que era um fluxo constante de pacientes tornou-se uma avalanche. A sala de espera transbordou para os corredores. Mulheres chegavam de ambulância, carregadas por familiares, algumas já em choque pela perda de sangue ou pela dor excruciante. Os sintomas eram assustadoramente uniformes, transcendendo idade, classe social ou histórico médico. Era como se um interruptor biológico tivesse sido acionado simultaneamente em todas elas.


E a onda não atingia apenas as pacientes. A Dra. Renata, uma ginecologista experiente, teve que ser amparada após quase desmaiar durante uma consulta. Duas técnicas de enfermagem do meu setor foram para casa mais cedo, curvadas de dor. A copeira que trazia o café não apareceu – soubemos depois que ela desmaiara no ônibus a caminho do trabalho. Eu mesma sentia a cólica se transformar em uma agonia lancinante, ondas de dor que me faziam prender a respiração e buscar apoio na parede mais próxima. O analgésico forte que tomei parecia água com açúcar.


Foi quando Dr. Ramirez, o chefe da obstetrícia, me encontrou perto do posto de enfermagem, o rosto antes jovial agora vincado por uma preocupação profunda e uma incredulidade crescente.


— Eliane, pelo amor de Deus, o que está acontecendo? — sua voz era quase um sussurro chocado. — Liguei para outros hospitais. São Miguel, Salgado Filho, até os privados na Zona Sul... a mesma coisa. Emergências lotadas, equipes desfalcadas. É como... como uma praga bíblica, mas só para mulheres.


O arrepio que senti não era mais de estranheza, mas de pavor. A racionalidade médica, nosso escudo contra o caos, estava se despedaçando. A realidade se impunha com uma força brutal e inexplicável.


— Doutor, — falei, a voz trêmula, não só pela dor que me rasgava por dentro, mas pela enormidade do que eu estava prestes a dizer. — Acho que... acho que minha intuição estava incorreta. Aquilo que comentei ontem com o senhor, de algumas mulheres estarem menstruando ao mesmo tempo... parece que não verdade são todas...


Ele me encarou, os olhos arregalados, a negação inicial dando lugar ao reconhecimento aterrorizado. 

— Mas isso... isso não faz sentido! É impossível!


— Eu sei, — respondi, apoiando-me pesadamente na bancada, sentindo o suor frio escorrer pela minha testa. — Mas olhe ao redor. Ouça os relatos. É a única coisa que explica essa... essa Sincronia.


A palavra pareceu pairar no ar carregado do corredor, nomeando o inominável. Sincronia. Um evento que desafiava a lógica, a biologia, a própria estrutura da realidade como a conhecíamos.


Antes que pudéssemos processar completamente a implicação daquela palavra, um grito agudo ecoou do final do corredor, seguido pelo som de correria e vozes em pânico.


"Código Vermelho! Sala de parto 3! Hemorragia maciça! A residente desmaiou! Precisamos de ajuda! AGORA!"


Troquei um olhar com Dr. Ramirez. O horror em seus olhos espelhava o meu. Não havia mais tempo para teorias ou negação. O impossível havia se tornado real. O caos estava instalado. E nós, os supostos guardiões da vida e da ordem, estávamos bem no olho do furacão, prestes a sermos engolidos pela tempestade que emanava de nossos próprios corpos.


***


O grito do Código Vermelho rasgou o ar já pesado do hospital, um alarme primal que silenciou por um instante o burburinho de dor e pânico. Instinto e treinamento assumiram o controle, sobrepondo-se à minha própria agonia física. Corri em direção à sala de parto 3, Dr. Ramirez em meu encalço, nossos passos ecoando sinistramente no corredor agora quase deserto – a maioria das pessoas estava ou incapacitada pela dor ou congelada pelo choque.


A cena que encontramos era de um caos controlado, a coreografia desesperada de uma equipe tentando conter o inevitável. A paciente, uma jovem que dera à luz seu primeiro filho horas antes, estava pálida como cera, os lençóis sob ela encharcados de um vermelho vivo e alarmante. A residente, uma moça esforçada que eu vinha orientando, estava caída ao lado da cama, desmaiada – vítima da Sincronia ou do estresse extremo, talvez ambos. Uma técnica de enfermagem tentava, com mãos trêmulas, estabelecer um novo acesso venoso enquanto outra pressionava o abdômen da paciente, uma manobra fútil diante da magnitude da hemorragia.


— Massagem uterina! Ocitocina em bolus! Chamar o banco de sangue, urgência máxima! Ramirez, precisamos de mais mãos aqui! — Minha voz saiu firme, cortando o pânico, um reflexo condicionado de anos lidando com emergências obstétricas. A dor em meu próprio corpo era uma brasa constante, mas a adrenalina a empurrava para um segundo plano, uma ameaça latente que eu não podia me dar ao luxo de enfrentar agora.


As horas seguintes se dissolveram em um borrão de procedimentos frenéticos, sangue, suor e uma tensão quase insuportável. Conseguimos estabilizar a paciente da sala 3, mas era apenas uma batalha vencida em uma guerra que parecia perdida. A cada porta que se abria, um novo drama se desenrolava. Pacientes em trabalho de parto prematuro induzido pela intensidade das contrações uterinas sincronizadas, mulheres com DIUs deslocados causando perfurações, outras com quadros de endometriose severa entrando em choque de dor. A equipe médica e de enfermagem, majoritariamente feminina, operava no limite da capacidade física e emocional. Víamos colegas sucumbindo aos sintomas, sendo substituídas por outras que mal se aguentavam em pé, em um revezamento desesperado e insustentável.


Os homens da equipe – médicos, enfermeiros, maqueiros, seguranças – corriam de um lado para outro, os rostos marcados por uma mistura de impotência, preocupação e uma estranha culpa por estarem imunes ao flagelo que atingia suas colegas, esposas, filhas. Vi Dr. Ramirez, normalmente um poço de calma, com lágrimas nos olhos ao telefone, tentando acalmar a esposa que também estava sofrendo em casa. Vi enfermeiros experientes hesitando em procedimentos simples, suas mãos tremendo não de imperícia, mas de pura exaustão e sobrecarga emocional.


O hospital, antes um organismo funcional, ainda que sobrecarregado, transformara-se em um cenário de filme de catástrofe. Os corredores estavam apinhados de macas improvisadas, o chão pegajoso em alguns pontos. O cheiro de sangue e desinfetante se misturava a um odor acre de medo. Os telefones tocavam incessantemente, mas raramente eram atendidos. As comunicações externas começaram a falhar – linhas congestionadas, internet instável. Estávamos nos tornando uma ilha de caos em meio a uma cidade que, eu intuía, também se afogava.


Em um raro momento de pausa, consegui chegar ao pequeno refeitório da equipe, buscando um copo d'água e um segundo para respirar. Encontrei Marcos lá, meu irmão. Seu uniforme de bombeiro estava sujo de fuligem, o rosto marcado pelo cansaço, mas seus olhos buscaram os meus com uma urgência preocupada.


— Eli! Vim assim que pude. O quartel está uma loucura, chamados de incêndio, desabamentos... mas quando ouvi no rádio sobre a situação nos hospitais, dei um jeito de escapar. Como você está? Você está pálida!


Ele me abraçou forte, um gesto de proteção que me transportou por um instante para a infância, para os tempos em que ele era meu herói particular contra os monstros imaginários. Agora, os monstros eram reais, internos, biológicos.


— Estou... sobrevivendo, Marcão, — murmurei contra seu peito, sentindo a solidez reconfortante de sua presença. — Mas está um inferno aqui. Nunca vi nada igual. É a Sincronia, não tem outra explicação.


— Eu sei. A cidade está um caos. Trânsito parado, muitas lojas fechadas, mulheres passando mal nas ruas... Parece que o mundo decidiu tirar uma folga forçada. Ou entrar em colapso. Ainda não sei qual dos dois. — Ele me afastou gentilmente, segurando meus ombros, seus olhos buscando os meus. — Mas e você? Essa dor... é forte?


Assenti, incapaz de mentir para ele. — É. Mas tem que aguentar. Precisam de mim aqui.


— Você não pode se matar de trabalhar assim, Eli! Você também está passando por isso!


— E quem vai cuidar delas se eu parar? — retruquei, a voz embargada pela dor e pela frustração. — Olhe ao redor, Marcos! Estamos perdendo! Não temos pessoal suficiente, não temos sangue, não temos leitos...


Ele me puxou para um canto mais reservado, a voz baixa e urgente. — Ouvi rumores... o governo decretou estado de emergência. Estão mobilizando as Forças Armadas para intervir nos hospitais, garantir a ordem, talvez até assumir a gestão.


Senti um calafrio percorrer minha espinha, e não era pela dor. Militares no hospital? Aquilo soava como gasolina em um incêndio. A abordagem deles seria técnica, fria, focada em números e protocolos, sem espaço para a empatia e o cuidado individualizado que eram tão cruciais naquele momento.


— Isso não vai dar certo, Marcão, — sussurrei, o medo se misturando à cólica. — Eles não entendem. Vão tratar isso como uma questão de segurança nacional, não como uma crise de saúde pública. Vão querer impor ordem à força, vão ignorar as necessidades específicas de cada mulher...


— Eu sei, Eli. Mas o que podemos fazer? A situação está saindo de controle.


Antes que eu pudesse responder, meu pager apitou. Outra emergência. Respirei fundo, endireitei os ombros, reassumi a máscara de profissionalismo que era minha única armadura.


— Preciso ir. Se cuida, Marcão. E cuidado lá fora.


— Você também, maninha. Me liga se precisar de qualquer coisa. Qualquer coisa mesmo.


Voltei para a linha de frente, mas a notícia da intervenção militar pairava sobre mim como uma nuvem escura. Era mais um elemento de caos em uma equação já insolúvel. Como poderíamos cuidar de nossas pacientes sob a mira de fuzis, sob ordens de quem não compreendia a natureza íntima e visceral do que estava acontecendo?


As horas seguintes confirmaram meus temores. Soldados começaram a chegar, posicionando-se nas entradas, nos corredores, suas presenças ostensivas criando uma atmosfera ainda mais tensa. Traziam consigo uma lógica de comando e controle que se chocava frontalmente com a dinâmica fluida e muitas vezes improvisada de um hospital em crise. Tentaram impor protocolos rígidos de triagem, restringir o acesso de familiares, controlar a distribuição de suprimentos – tudo com a melhor das intenções, talvez, mas com uma ignorância brutal sobre as necessidades reais.


Vi um sargento discutindo asperamente com Dr. Ramirez sobre a alocação de bolsas de sangue, como se fossem meros itens de estoque a serem gerenciados por planilha. Vi soldados impedindo uma mãe de ficar ao lado da filha adolescente que chorava de dor e medo. Vi a desconfiança e o ressentimento crescendo nos olhos da equipe médica e das pacientes.


Em meio a esse novo nível de tensão, tentei me concentrar no essencial: o cuidado direto às mulheres. Percebi que os analgésicos e antiespasmódicos convencionais, mesmo os mais potentes, tinham efeito limitado contra a intensidade da dor da Sincronia. O desespero nos olhos das pacientes me levou a um lugar inesperado: as memórias de minha avó.


Vovó Benedita, parteira tradicional no interior da Bahia, curandeira de mão cheia, sempre tivera um chá, uma infusão, um emplastro para cada mal. Lembro-me vagamente de suas mãos nodosas amassando folhas, de seu conhecimento ancestral sobre o poder das plantas. Um conhecimento que a medicina moderna, com sua arrogância tecnológica, muitas vezes desprezava.


Em um impulso, durante uma breve janela de calmaria relativa, liguei para minha mãe. A conexão estava péssima, a voz dela quase inaudível, mas consegui perguntar sobre os chás que vovó costumava fazer para cólicas.


— Folha de algodoeiro, minha filha... artemísia... agoniada…— a voz dela falhava, misturada à estática. — Mas cuidado com as doses, Eliane... algumas são fortes...


A ligação caiu. Mas aquelas palavras foram suficientes. Folha de algodoeiro, artemísia, agoniada. Nomes que evocavam um saber antigo, uma conexão com a terra e com o corpo feminino que havíamos perdido em algum ponto do caminho.


Não havia tempo para pesquisas aprofundadas ou protocolos de segurança. A situação era desesperadora. Com a ajuda de Dona Célia, uma das auxiliares de limpeza mais antigas do hospital, uma mulher negra de sorriso fácil e mãos sábias que conhecia todos os cantos e segredos daquele lugar, consegui encontrar algumas dessas ervas no pequeno jardim interno do hospital – um espaço esquecido, quase selvagem, onde a natureza insistia em sobreviver.


Fervemos água em uma chaleira elétrica improvisada na copa, preparamos as infusões em canecas de plástico, a fumaça aromática subindo como uma prece silenciosa em meio ao caos. Comecei a oferecer os chás às pacientes com dores mais intensas, explicando com cuidado que era uma tentativa paliativa, baseada em conhecimentos tradicionais, para aliviar o sofrimento onde a medicina convencional falhava.


Algumas me olharam com desconfiança, outras com a esperança desesperada de quem se agarra a qualquer tábua de salvação. Mas muitas aceitaram. E, para minha surpresa e alívio, algumas começaram a relatar uma melhora sutil, um abrandamento das cólicas, uma sensação de calor e acolhimento que os comprimidos não ofereciam.


Não era uma cura, longe disso. Mas era algo. Um gesto de cuidado, uma ponte entre o conhecimento ancestral e a crise moderna, uma pequena luz de humanidade em meio à escuridão tecnológica e militar que nos cercava. Naquele momento, senti que estava fazendo mais do que apenas seguir protocolos. Estava resgatando algo essencial, algo que a Sincronia, em sua brutalidade, talvez estivesse nos forçando a reencontrar: a sabedoria inscrita em nossos próprios corpos e na natureza que nos cerca. Era um pensamento perigoso, talvez, em um ambiente tão rigidamente científico. Mas era o único pensamento que me oferecia algum consolo, alguma direção, enquanto a tempestade continuava a rugir lá fora e dentro de mim.


***


Os dias que se seguiram à chegada dos militares e à minha tímida incursão no universo das ervas de Vovó Benedita foram uma descida ainda mais profunda no vórtice do caos. A Sincronia não dava trégua, e o hospital, agora sob uma gestão híbrida e tensa entre médicos e militares, tornava-se um microcosmo da desintegração que assolava o Rio de Janeiro e, pelo que chegava em fragmentos de notícias desencontradas, o mundo.


A presença militar, inicialmente vista por alguns como uma promessa de ordem, rapidamente se revelou um entrave burocrático e psicológico. O controle sobre a entrada e saída de suprimentos tornou-se rígido, mas ineficiente. Faltavam analgésicos básicos, bolsas de sangue tornavam-se artigos de luxo disputados em formulários triplicados, enquanto estoques de itens menos urgentes, como material de escritório ou uniformes novos, permaneciam intocados por ordem de algum oficial que seguia um protocolo genérico de gestão de crises. A lógica militar, focada em hierarquia e controle de recursos tangíveis, era incapaz de compreender a natureza fluida e imprevisível de uma emergência de saúde pública, especialmente uma tão visceral e exclusivamente feminina.


As discussões entre a equipe médica e os oficiais tornaram-se rotina. Dr. Ramirez, outrora um diplomata nato, perdia a compostura frequentemente, tentando explicar a urgência de um procedimento ou a necessidade de flexibilizar regras para permitir o apoio emocional de familiares, apenas para ser recebido com olhares impassíveis e remissões a regulamentos escritos em gabinetes distantes. A frase "Senhor, estamos seguindo ordens" tornou-se um mantra irritante, um escudo contra a realidade gritante que nos cercava.


Em meio a essa tensão institucional, minha pequena "farmácia de chás" improvisada na copa tornou-se um refúgio inesperado, um ponto de resistência silenciosa. Com a ajuda incansável de Dona Célia, que parecia conhecer cada planta do jardim interno como a palma de sua mão e possuía um conhecimento prático sobre suas propriedades que me deixava humildemente maravilhada, expandimos nosso repertório. Folhas de amora para regular o fluxo, camomila e melissa para acalmar os nervos à flor da pele, gengibre para as náuseas persistentes. Não tínhamos como garantir a dosagem correta ou a ausência de interações medicamentosas, um risco que me assombrava nas poucas horas de sono, mas o desespero era maior.


As reações eram mistas. Algumas colegas enfermeiras e médicas me olhavam com ceticismo, sussurrando sobre charlatanismo ou responsabilidade profissional. Outras, porém, especialmente as mais jovens e as que vinham de famílias com tradições populares mais fortes, aproximavam-se com curiosidade, pedindo um copo do chá "milagroso" de Dona Célia e Eliane. Entre as pacientes, a aceitação era maior. Eram mulheres no limite da dor, abandonadas por um sistema que não tinha respostas, e qualquer gesto de cuidado, qualquer promessa de alívio, era bem-vindo. Comecei a ouvir relatos mais consistentes de melhora, não apenas física, mas emocional. O simples ato de receber uma bebida quente, preparada com intenção e carinho, parecia restaurar um senso de dignidade e acolhimento que a abordagem fria e protocolar do hospital havia roubado.


Dona Célia tornou-se minha mentora improvável. Enquanto separávamos folhas e fervíamos água, ela compartilhava histórias de sua própria avó, também curandeira, de como as mulheres de sua comunidade sempre se apoiaram, trocando saberes sobre o corpo, sobre os ciclos, sobre a vida e a morte. 


— A gente esqueceu, Dra. Eliane, — ela me disse um dia, os olhos sábios fixos nos meus. — Esqueceu de ouvir o corpo, de confiar na natureza. Essa doença... talvez ela veio pra lembrar a gente.


Aquelas palavras ecoaram em mim. Seria possível? Que a Sincronia, em toda a sua brutalidade, fosse mais do que um evento biológico aleatório? Que houvesse um significado mais profundo, uma mensagem a ser decifrada? Afastei o pensamento, classificando-o como delírio do cansaço. Mas a semente estava plantada.


O mundo exterior continuava a se comunicar conosco apenas por fragmentos. A televisão na sala de espera da equipe, quando funcionava, mostrava imagens desconexas de cidades paralisadas, discursos oficiais prometendo soluções rápidas, cientistas debatendo teorias conflitantes sobre a causa da Sincronia – de erupções solares a armas biológicas experimentais. As notícias eram um ruído de fundo caótico, difícil de assimilar em nossa realidade já saturada.


Tentei ligar para Leandro diversas vezes, mas as chamadas não completavam. A angústia pela falta de notícias dele e de Lorena era uma dor adicional, constante. Consegui falar rapidamente com Marcos algumas vezes. Ele descrevia uma cidade fantasma, com serviços essenciais operando em regime mínimo, toque de recolher noturno imposto pelos militares, e o surgimento de boatos e pânico. Falou sobre grupos religiosos que pregavam o fim dos tempos, culpando as mulheres pelo "castigo divino", e outros que se organizavam para oferecer ajuda mútua, criando redes de apoio nos bairros. Mencionou também o oportunismo de alguns, comércios inflando preços de absorventes e analgésicos, e o surgimento de milícias controlando o acesso a certos recursos em áreas mais periféricas. O tecido social estava se esgarçando rapidamente, revelando o melhor e o pior da natureza humana.


Uma noite, durante um plantão particularmente infernal, a realidade da escassez nos atingiu com força total. Acabaram as bolsas de sangue O negativo. Simplesmente não havia mais. Uma jovem vítima de um acidente de moto, com hemorragia interna grave, precisava de transfusão urgente. O banco de sangue estava vazio. Os apelos por doadores na mídia não surtiam efeito – quem se aventuraria a sair de casa em meio ao caos e ao toque de recolher? Os militares se recusaram a fornecer transporte para buscar sangue em outras cidades, alegando questões de segurança e prioridade logística.


Assistimos, impotentes, enquanto a vida daquela jovem se esvaía. Dr. Ramirez socou a parede em frustração silenciosa. Vi enfermeiras chorando abertamente nos corredores. Eu senti uma raiva fria e profunda crescer dentro de mim – uma raiva contra o sistema, contra a burocracia, contra a indiferença militar, contra a própria Sincronia que nos colocara naquela situação impossível.


Naquela mesma noite, um incidente com os militares quase terminou em tragédia. Um soldado jovem, provavelmente assustado e sobrecarregado, interpretou mal um movimento brusco de um pai desesperado que tentava entrar na UTI neonatal para ver o filho prematuro e disparou um tiro de advertência para o teto. O som do disparo ecoou pelo hospital como um trovão, estilhaçando a já frágil sensação de segurança. O pânico se instalou. Pacientes gritaram, a equipe se jogou no chão. Por sorte, ninguém se feriu, mas o incidente deixou cicatrizes invisíveis. A relação entre a equipe de saúde e os militares, já tensa, tornou-se abertamente hostil.


Foi nesse clima de desespero, escassez e crescente animosidade que a notícia chegou, trazida por um rádio de pilha que Dona Célia mantinha escondido na copa: cientistas haviam confirmado, através de análises hormonais e estatísticas globais, que a Sincronia não era um evento isolado. Os padrões indicavam uma ciclicidade. Ela voltaria. No mês seguinte. E provavelmente nos meses subsequentes. Não era uma crise passageira. Era a nova realidade.


A notícia caiu sobre nós como uma laje de concreto. A esperança tênue de que aquilo acabaria logo, de que a normalidade seria restaurada, evaporou-se. Estávamos presos em um ciclo de dor e caos que se repetiria indefinidamente. Olhei para os rostos exaustos e assustados ao meu redor. Vi o desespero se aprofundar nos olhos das minhas colegas. Vi a resignação sombria tomar conta até dos mais otimistas.


Eu mesma senti um nó na garganta, uma vontade de gritar, de chorar, de fugir. Mas então, olhei para a caneca de chá de folha de algodoeiro que estava em minhas mãos, o vapor subindo em espirais suaves. Lembrei-me das palavras de Dona Célia, da sabedoria de minha avó, da resiliência das mulheres que me cercavam. A Sincronia era uma tempestade, sim. Mas talvez, apenas talvez, ela também fosse uma oportunidade. Uma oportunidade dolorosa e brutal de redescobrir nossa força, nossa conexão umas com as outras, nossa sabedoria ancestral. Uma oportunidade de construir algo novo sobre as ruínas do velho mundo.


Não seria fácil. Seria uma luta longa, árdua, travada mês após mês. Mas, naquele momento, em meio ao caos e ao desespero, senti uma faísca de determinação se acender dentro de mim. Eu não fugiria. Eu ficaria. Eu lutaria. Com minhas mãos, com meu conhecimento clínico, e agora, também com as ervas de minha avó. Eu seria uma ponte. E ajudaria outras mulheres a atravessar essa tempestade, juntas.


***


A confirmação de que a Sincronia seria nossa companheira mensal, uma sombra cíclica sobre a existência feminina, pairou sobre o Hospital Universitário Pedro Ernesto como um miasma denso e sufocante. Os dias que se seguiram à notícia foram marcados por uma exaustão diferente, não apenas física, mas existencial. A adrenalina que nos sustentara na fase aguda da crise começou a refluir, deixando para trás um resíduo de desesperança e uma ansiedade palpável pelo que viria no próximo ciclo. O hospital, ainda sob a incômoda tutela militar, tentava encontrar um simulacro de rotina em meio ao extraordinário.


A equipe, dizimada pela primeira onda, começou a se reorganizar de forma claudicante. Muitas colegas pediram licença, outras simplesmente não retornaram, vencidas pelo trauma ou pela impossibilidade de conciliar o trabalho com a própria vulnerabilidade. As que ficaram, como eu, carregavam o peso da responsabilidade e a cicatriz invisível da primeira batalha. Havia uma nova camaradagem entre nós, forjada no sofrimento compartilhado, mas também um distanciamento sutil, como se cada uma estivesse construindo suas próprias defesas internas para o que estava por vir.


A minha "farmácia de chás" com Dona Célia tornou-se uma instituição não oficial dentro do caos oficial. A notícia sobre os efeitos paliativos das infusões se espalhara. Pacientes, e até mesmo algumas enfermeiras e médicas mais jovens, procuravam-nos discretamente. A gestão do hospital, inicialmente cética e preocupada com implicações legais, começou a fazer vista grossa, talvez por pragmatismo diante da contínua escassez de medicamentos convencionais, talvez por um reconhecimento tácito de que qualquer alívio era bem-vindo. Conseguimos até uma pequena sala de almoxarifado desativada para organizar melhor nossas ervas e o preparo, um pequeno santuário de acolhimento em meio à esterilidade hospitalar.


Decidi que precisava ir além do improviso. Nas raras horas de folga, mergulhei em pesquisas online – quando a internet funcionava – buscando estudos etnobotânicos, artigos sobre medicina tradicional, qualquer coisa que pudesse embasar e refinar o uso das ervas. Encontrei um universo vasto e complexo, um conhecimento ancestral que a ciência ocidental mal começara a arranhar. Descobri que muitas das plantas que Vovó Benedita usava tinham, de fato, propriedades analgésicas, anti-inflamatórias e reguladoras hormonais comprovadas, ainda que os mecanismos exatos nem sempre fossem compreendidos. Comecei a catalogar as informações, a cruzar dados, a pensar em protocolos de uso mais seguros, sonhando com uma integração real entre os saberes.


As comunicações com o mundo exterior continuavam precárias. Salvador parecia estar em outra galáxia. As ligações para Leandro caíam constantemente ou nem completavam. A angústia de não saber como ele e Lorena estavam lidando com tudo aquilo era uma tortura silenciosa. Quando finalmente consegui falar com ele, por poucos minutos de uma chamada instável e cheia de ruídos, sua voz soava cansada, mas firme. Ele contou brevemente sobre o "Mapa Vermelho" que estavam criando, uma iniciativa para conectar pessoas e recursos, e sobre a situação em Salvador, que parecia igualmente caótica, mas com uma resposta comunitária que soava mais orgânica e menos militarizada que a do Rio. 


— Estamos resistindo, Eli. E você? —, ele perguntou. — Também, maninho. Do meu jeito —, respondi, antes que a ligação caísse novamente, deixando um misto de alívio e preocupação.


Marcos, meu irmão bombeiro, era meu principal elo com a realidade da cidade. Ele relatava um Rio de Janeiro que aprendia a conviver com o medo e a incerteza. O toque de recolher continuava, mas a vida, teimosa, insistia em brotar pelas frestas. Mercados improvisados surgiam, redes de troca se formavam, vizinhos se ajudavam. Mas também havia o lado sombrio: o aumento da violência em certas áreas, a atuação de grupos oportunistas e o surgimento de facções que tentavam impor sua própria lei. Uma delas, chamada "Os Purificadores", de cunho religioso fanático, pregava que a Sincronia era um castigo divino e que as mulheres "impuras" deveriam ser isoladas. Seus discursos inflamados começavam a ganhar adeptos entre os mais desesperados e ignorantes, e relatos de hostilidade contra mulheres em bairros dominados por eles se tornavam preocupantemente frequentes. Outra facção, "A Irmandade Escarlate", parecia ser um grupo de mulheres mais radicalizado, que pregava a autodefesa e a ruptura total com as estruturas patriarcais, às vezes com táticas que beiravam a violência. O governo e os militares pareciam mais preocupados em manter uma fachada de controle do que em lidar com essas novas dinâmicas sociais complexas.


No hospital, a semana terminou com uma reunião tensa entre a direção médica e o comando militar. Os oficiais apresentaram um plano de "otimização de recursos" para o próximo ciclo da Sincronia, que incluía a concentração de todas as pacientes em alas específicas, a padronização de tratamentos (ignorando a individualidade dos casos e a eficácia limitada dos medicamentos) e a restrição ainda maior do trabalho de profissionais "não essenciais" – uma categoria que, temia eu, poderia incluir minha iniciativa com os chás.


Saí daquela reunião com um nó no estômago. A abordagem tecnocrática e desumanizada parecia destinada a se entrincheirar. Mas, ao mesmo tempo, sentia uma clareza crescente sobre meu próprio papel. Eu não podia mudar o sistema de cima para baixo, não sozinha. Mas podia continuar construindo pontes, oferecendo alternativas, resgatando saberes que pudessem trazer alívio e dignidade. O conhecimento de minha avó, antes uma lembrança afetiva, tornava-se uma ferramenta de resistência.


Naquela noite, exausta, deitei em minha cama no pequeno apartamento em Vila Isabel, o silêncio da cidade sob toque de recolher quebrado apenas pelo som distante de sirenes. Pela primeira vez em dias, a dor física da Sincronia havia diminuído a ponto de ser suportável sem analgésicos. Olhei para o teto, para as sombras que a luz da lua desenhava, e pensei no futuro. A Sincronia nos havia roubado a normalidade, mas talvez, apenas talvez, estivesse nos oferecendo algo em troca: a chance de repensar quem éramos, como sociedade, como mulheres, como seres humanos. A chance de resgatar conexões perdidas – com nossos corpos, com a natureza, umas com as outras.


Lembrei-me de uma conversa com Dona Célia, enquanto colhíamos malva no jardim do hospital. Ela mencionara, de passagem, que sua avó contava histórias de "outros tempos", quando o mundo era diferente, quando as mulheres tinham um poder que fora esquecido. Naquele momento, pareceu apenas uma reminiscência folclórica. Mas agora, com a Sincronia rasgando o véu da realidade, aquelas palavras ganhavam um peso novo, quase profético. E se houvesse mundos diferentes, realidades paralelas onde as coisas fossem... distintas? E se a Sincronia fosse um eco, uma fissura entre esses mundos? Era um pensamento vertiginoso, beirando a loucura, mas em um mundo que já não fazia sentido, talvez a loucura fosse apenas uma nova forma de ver.


Afastei esses pensamentos mais estranhos. Precisava focar no presente, no próximo ciclo. Eu continuaria minha pesquisa, tentaria formalizar o uso das ervas, buscaria aliados dentro e fora do hospital. Talvez, como Leandro sugerira sutilmente em nossa breve ligação, uma mudança para Salvador, para perto dele e de Lorena, para um ambiente onde a resistência parecia florescer de forma mais comunitária, fosse algo a considerar no futuro. Mas, por ora, meu lugar era ali, no olho do furacão carioca, com minhas pacientes, com Dona Célia, com as ervas de minha avó. A primeira semana da Sincronia terminava, mas a minha jornada, a nossa jornada, estava apenas começando. E eu estava pronta.


 
 
 

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
bottom of page