Capítulo 1 - Pixels e Café
- Marcus Vinicius SS
- 18 de jun.
- 32 min de leitura
Atualizado: 27 de jun.

Publicado quarta, 18 de junho de 2025
Meu nome é Leandro Teles Barros, tenho vinte e seis anos e a vida, até três dias atrás, era uma aquarela previsível pintada nos tons quentes de Salvador. Moro em Brotas, um bairro que pulsa com uma vida própria, um emaranhado de ladeiras, casas coloridas e o cheiro constante de dendê misturado ao sal da maresia que o vento teima em carregar até aqui. Sou designer freelancer, o que significa que meu escritório é onde meu notebook estiver, e meus horários são tão flexíveis quanto a maré – às vezes calmos, permitindo um café demorado na varanda, outras vezes agitados, com prazos urgentes que me engolem noite adentro.
A ironia é que, mesmo com essa suposta liberdade, a rotina acaba se impondo, um ciclo de briefings, paletas de cores, vetores e a busca incessante pela xícara de café perfeita para manter a criatividade fluindo. Meu apartamento é pequeno, mas aconchegante – um quarto, sala, cozinha e um cantinho improvisado que chamo de estúdio, onde minha mesa de trabalho convive com uma estante repleta de livros de design, alguns mangás que coleciono desde a adolescência e minhas plantas, companheiras silenciosas que me lembram de pausar ocasionalmente para regar algo além da minha própria criatividade.
Naquela manhã de terça-feira, o sol entrava tímido pela janela da sala, encontrando-me já imerso em um projeto para um pequeno restaurante aqui do bairro. A tela do computador exibia um emaranhado de ideias, logos em potencial, tipografias que dançavam entre o moderno e o tradicional. O aroma do café recém-passado era meu combustível, a trilha sonora ambiente vinha dos passarinhos na mangueira do vizinho e do burburinho distante do trânsito matinal. Era um dia comum, daqueles que a gente nem percebe que está vivendo até que algo extraordinário o quebre em mil pedaços.
Minha rotina matinal sempre seguia um padrão quase ritualístico: acordar às seis e meia, mesmo quando não havia necessidade (herança dos tempos de escola que nunca consegui abandonar), escovar os dentes enquanto observava o céu mudar de cor pela janela do banheiro, preparar um café forte na minha cafeteira italiana (presente de Lorena no nosso primeiro aniversário de namoro) e sentar-me à mesa de trabalho ainda de pijama, aproveitando aquelas primeiras horas do dia quando a mente está fresca e as ideias fluem com mais facilidade.
Lorena costumava me ligar por volta das nove, no intervalo entre suas aulas na faculdade. Ela estava no terceiro ano de psicologia, mergulhada em teorias complexas e estágios desafiadores. Nossa dinâmica era interessante – eu, com meu olhar estético para o mundo, sempre atento às formas, cores e composições; ela, fascinada pelos meandros da mente humana, pelos comportamentos e motivações ocultas. Complementávamos um ao outro de maneiras que nem sempre conseguíamos articular, mas que sentíamos profundamente.
Naquela manhã específica, porém, o telefonema não veio no horário habitual. Não dei muita importância inicialmente – a vida acadêmica tem seus próprios ritmos e urgências. Continuei trabalhando no projeto, ajustando a curvatura de uma letra, experimentando diferentes tonalidades de vermelho para o logotipo do restaurante, que se especializava em frutos do mar com um toque contemporâneo.
Lorena provavelmente ainda estaria mergulhada nos seus livros e teorias complexas lá no Itaigara, bairro nobre de Salvador onde morava com os pais. Nosso relacionamento era um porto seguro, um contraste bem-vindo à instabilidade da minha profissão e à intensidade dos seus estudos. Conversávamos sobre tudo, desde os mistérios da mente humana que tanto a fascinavam até as nuances de um degradê que eu não conseguia acertar. Ela era a cor vibrante na minha paleta pessoal, a melodia que quebrava o silêncio dos meus dias de trabalho solitário.
Conheci ela há dois anos, em uma exposição de arte contemporânea no Museu de Arte Moderna da Bahia. Eu estava lá mais por obrigação profissional do que por interesse genuíno – um cliente queria referências visuais para um projeto e me pediu para "absorver a essência" da exposição. Lorena estava sozinha, contemplando uma instalação particularmente enigmática, e algo em sua postura, na forma como inclinava levemente a cabeça enquanto observava a obra, me capturou instantaneamente. Aproximei-me com a desculpa de pedir sua opinião sobre a peça, e acabamos passando as duas horas seguintes vagando pelo museu, compartilhando impressões, discordando amigavelmente sobre interpretações, descobrindo afinidades inesperadas.
Ela era – é – fascinante. Inteligente de um jeito que intimida e atrai simultaneamente, com opiniões fortes sobre praticamente tudo, desde política até qual o melhor acarajé da cidade (questão que, em Salvador, é quase tão séria quanto política). Vem de uma família de classe média alta, com uma irmã mais velha que já seguiu carreira no exterior, pais exigentes e uma educação privilegiada que lhe deu acesso a oportunidades que eu, filho de professores do interior, só conheci mais tarde na vida. Mas nunca houve qualquer ar de superioridade em Lorena – apenas uma consciência aguda de seus privilégios e um compromisso genuíno em usar seu conhecimento e posição para causas maiores que ela mesma.
Lembro-me de ter enviado uma mensagem para ela mais cedo, algo trivial sobre o almoço, talvez um convite para comermos algo diferente na Ribeira no fim de semana. A resposta demorou um pouco, o que não era incomum quando ela estava focada. Enquanto esperava, dei uma pausa no trabalho e liguei para Eliane. Ela é enfermeira obstetra no Rio, uma fortaleza de mulher que sempre admirei pela sua dedicação e força.
Minha irmã seis anos mais velha, sempre foi meu farol. Quando nossos pais se separaram, eu tinha apenas doze anos, e foi ela, com dezoito, quem garantiu que eu não me perdesse na turbulência emocional que se seguiu. Enquanto nossa mãe lutava contra a depressão e nosso pai se afastava, física e emocionalmente, Eliane assumiu responsabilidades que não eram dela, certificando-se de que eu continuasse estudando, que tivesse alguma normalidade em meio ao caos. Foi ela quem percebeu meu talento para desenho e design, quem economizou durante meses para me dar meu primeiro tablet gráfico, quem me incentivou a transformar aquilo que eu amava em profissão.
Agora, estabelecida como enfermeira obstetra no Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro, Eliane continuava sendo minha conselheira, meu porto seguro, a voz da razão quando minha impulsividade ameaçava me levar por caminhos duvidosos. Nossas conversas telefônicas semanais eram um ritual sagrado, um momento para reconexão, para lembrar de onde viemos e celebrar onde chegamos, apesar de todos os obstáculos.
Conversamos sobre as trivialidades do dia a dia, as saudades, as preocupações com nossos pais no interior. Ela mencionou, de passagem, um cansaço diferente, uma sensação estranha que não soube descrever, mas que logo descartou como fruto das longas horas de plantão. Mal sabíamos nós o que estava por vir.
—Você parece exausta, Eli, — comentei, notando o tom mais arrastado em sua voz normalmente enérgica.
— Estou mesmo, Lee. Essa semana foi brutal no hospital. Três partos complicados em sequência, uma emergência com uma gestante de alto risco, e ainda tive que cobrir o plantão da Mariana ontem à noite.
— Você precisa descansar mais. Não pode salvar o mundo sozinha, sabia?
Ela riu, aquela risada familiar que sempre me trazia conforto, mesmo através da distância. — Olha quem fala! O workaholic que passa madrugadas acordado ajustando pixels que ninguém mais consegue ver.
— Touché, — concedi, sorrindo para o telefone. — Mas é diferente. Eu pelo menos posso fazer pausas quando quero, trabalhar de pijama, tirar um cochilo no meio da tarde...
— Ah, a liberdade do freelancer! Como te invejo às vezes.
— E eu invejo a estabilidade do seu contracheque todo mês, — rebati, em nossa dança familiar de provocações afetuosas.
Houve uma pausa, um silêncio que durou alguns segundos a mais do que o normal em nossas conversas.
— Eli? Tudo bem?
—Sim, sim... só uma tontura passageira. Deve ser fome, não almocei direito hoje.
— Você precisa se cuidar também, não só dos outros.
— Eu sei, maninho. É só que... tem algo estranho acontecendo. Não sei explicar. Uma sensação... diferente.
— Que tipo de sensação?
— É como se... como se meu corpo estivesse se preparando para algo. Uma inquietação, sabe? E não sou só eu. Notei várias pacientes e colegas no hospital comentando sobre sensações semelhantes nos últimos dias. Provavelmente é só estresse coletivo, ou talvez alguma mudança climática afetando todo mundo.
— Ou talvez seja o apocalipse zumbi finalmente chegando, — brinquei, tentando aliviar o tom subitamente sério da conversa.
Ela riu, mas foi uma risada curta, quase forçada. — Quem sabe? De qualquer forma, preciso desligar. Tenho uma reunião de equipe em dez minutos.
— Claro. Se cuida, Eli. Te amo.
— Também te amo, Lee. Manda um beijo para Lore.
O resto da manhã transcorreu entre pixels e goles de café. O projeto do restaurante começava a tomar forma, as cores se harmonizavam, a tipografia encontrava seu lugar. Senti aquela satisfação discreta que acompanha a conclusão de uma etapa criativa. Olhei pela janela e vi o céu de Salvador, um azul intenso, pontilhado por nuvens brancas que pareciam pinceladas displicentes. Nada indicava a tempestade que se avizinhava, nenhuma nuvem escura no horizonte, nenhum vento mais forte. Apenas a vida seguindo seu curso, alheia ao fato de que o mundo, como o conhecíamos, estava prestes a mudar de forma.
O café esfriou na xícara, esquecido, enquanto eu me perdia nos últimos ajustes do layout, sem imaginar que aqueles eram os últimos momentos de uma normalidade que logo se tornaria uma lembrança distante, quase um sonho. Meu celular vibrou, finalmente uma resposta de Lorena. Sorri antecipadamente, imaginando alguma provocação bem-humorada ou talvez uma confirmação para nossos planos do fim de semana. Mas a mensagem que li fez meu sorriso congelar, substituído por uma expressão de preocupação que, nos dias seguintes, se tornaria familiar demais.
"Lee, não estou me sentindo bem. Algo está errado. Muito errado."
Reli a mensagem três vezes, tentando decifrar o tom por trás das palavras digitadas. Lorena não era do tipo dramático – pelo contrário, sempre foi pragmática, quase estoica diante de problemas. Para ela expressar preocupação dessa forma, algo realmente sério devia estar acontecendo.
Liguei imediatamente. Três toques, quatro, cinco. Nada. Tentei novamente. Direto para a caixa postal. Uma sensação gelada começou a se espalhar pelo meu estômago, aquele pressentimento instintivo de que algo está fundamentalmente errado. Enviei outra mensagem:
"Estou indo para aí agora. Me responda assim que puder."
Fechei o notebook sem me preocupar em salvar o projeto, peguei as chaves, a carteira e saí do apartamento quase correndo. O céu continuava absurdamente azul, zombando da minha ansiedade crescente. O contraste entre a beleza do dia e o aperto no meu peito parecia uma piada de mau gosto do universo.
O trajeto de Brotas até o Itaigara normalmente levava cerca de vinte minutos de ônibus, mas naquele dia parecia que cada semáforo conspirava contra mim, cada parada se estendia por uma eternidade. Tentei ligar para Lorena mais duas vezes durante o percurso, sem sucesso. Também tentei contatar Mariana, a irmã mais velha dela, mas o número caía na caixa postal imediatamente.
Enquanto o ônibus avançava lentamente pelo trânsito de Salvador, comecei a notar algo estranho. Havia uma tensão no ar, quase palpável. Uma mulher sentada duas fileiras à minha frente estava visivelmente desconfortável, o rosto contorcido em uma expressão de dor. A cobradora parecia irritadiça, respondendo secamente às perguntas dos passageiros. Na calçada, vi uma jovem sentada no meio-fio, abraçando o próprio abdômen, enquanto uma amiga lhe oferecia água.
Meu celular vibrou. Por um momento, meu coração saltou, pensando ser Lorena. Mas era Eliane novamente.
— Lee, está acontecendo algo muito estranho aqui no hospital. Todas as pacientes do sexo feminino estão apresentando os mesmos sintomas simultaneamente. Cólicas intensas, náuseas, tonturas. E não são só as pacientes – as médicas, enfermeiras, funcionárias da limpeza, todas. É como se...
A mensagem foi interrompida abruptamente. Tentei retornar a ligação, mas só consegui ouvir o sinal de ocupado. A ansiedade que já me consumia agora se transformava em um pânico crescente.
Finalmente, o ônibus chegou ao ponto mais próximo da casa de Lorena. Desci apressadamente, quase tropeçando nos próprios pés, e corri as três quadras que me separavam do condomínio onde ela morava com os pais. No caminho, passei por uma farmácia onde uma fila considerável de mulheres se formava. Todas pareciam compartilhar a mesma expressão – uma mistura de dor, confusão e crescente alarme.
O porteiro do condomínio me conhecia bem o suficiente para me deixar entrar sem anunciar. Subi os dois lances de escada até o apartamento 302, ofegante não apenas pelo esforço físico, mas pela adrenalina que corria em minhas veias. Toquei a campainha repetidamente, até ouvir passos arrastados do outro lado da porta.
Foi a mãe de Lorena, Dra. Cláudia, quem atendeu. Normalmente impecável em seu tailleur e salto alto, símbolo de sua posição como diretora de um grande hospital privado, ela estava irreconhecível. Cabelos desgrenhados, rosto pálido, olheiras profundas, vestindo um roupão que parecia ter sido colocado às pressas.
— Leandro,— ela disse, sua voz normalmente firme agora reduzida a um sussurro rouco. — Graças a Deus você está aqui.
— O que está acontecendo? Onde está Lorena? — perguntei, entrando no apartamento sem esperar convite.
— No quarto dela. Está... como todas nós.
O apartamento, geralmente imaculado, apresentava sinais de desordem incomuns. Uma xícara quebrada no chão da cozinha, papéis espalhados sobre a mesa de jantar, um cobertor jogado displicentemente sobre o sofá.
— Todas vocês? O que quer dizer?
Dra. Cláudia fez um gesto vago com a mão, como se as palavras lhe faltassem.
— Começou há algumas horas. Primeiro pensei que fosse algo que comi, depois achei que poderia ser algum tipo de intoxicação no hospital. Mas então Lorena começou a sentir os mesmos sintomas, e Mariana ligou do trabalho dizendo que estava passando mal também. E então começaram as ligações. Minhas colegas, enfermeiras, pacientes... todas as mulheres, Leandro. Todas.
Ela se apoiou na parede, como se o peso de suas próprias palavras a fizesse perder o equilíbrio.
— Em trinta anos de medicina, nunca vi nada parecido. É como se... como se todas as mulheres do mundo tivessem entrado no período menstrual ao mesmo tempo, mas com uma intensidade...
Não esperei que ela terminasse a frase. Corri pelo corredor até o quarto de Lorena, batendo levemente na porta antes de entrar. O cômodo estava na penumbra, as cortinas fechadas bloqueando a luz impiedosa do sol baiano. O ar-condicionado zumbia no máximo, criando um ambiente quase glacial.
Lorena estava encolhida na cama, abraçando uma bolsa de água quente contra o abdômen. Seu rosto, normalmente vibrante e expressivo, estava contraído em uma máscara de dor. Ao me ver, tentou esboçar um sorriso, mas o que conseguiu foi apenas uma careta.
— Ei, designer, — ela murmurou, usando o apelido carinhoso que reservava para nossos momentos mais íntimos. — Desculpe o drama na mensagem.
Sentei-me na beira da cama, afastando uma mecha de cabelo que caía sobre seus olhos. — Que drama? Você está claramente no auge da sua forma, — tentei brincar, mas minha voz traiu a preocupação.
— É só TPM, — ela disse, tentando soar casual. — Só que multiplicada por mil. E aparentemente, sincronizada com cada mulher do planeta.
— Como assim?
Ela apontou para o notebook aberto ao lado da cama. Na tela, várias janelas de notícias estavam abertas, todas reportando o mesmo fenômeno em diferentes partes do mundo.
— Começou na Ásia, depois Europa, agora aqui. Está se espalhando conforme os fusos horários. Todas as mulheres, Lee. Todas. Ao mesmo tempo.
Peguei o notebook e comecei a ler as manchetes, cada uma mais alarmante que a anterior:
"FENÔMENO GLOBAL: MULHERES EM TODO O MUNDO RELATAM SINTOMAS MENSTRUAIS SIMULTÂNEOS"
"HOSPITAIS SOBRECARREGADOS COM CASOS DE CÓLICAS SEVERAS E HEMORRAGIAS"
"CIENTISTAS PERPLEXOS COM SINCRONIZAÇÃO MENSTRUAL EM ESCALA PLANETÁRIA"
"TEORIA DA CONSPIRAÇÃO OU FENÔMENO NATURAL? O MISTÉRIO DA 'SINCRONIA GLOBAL'"
"PRIMEIROS RELATOS DE MORTES RELACIONADAS AO 'EVENTO VERMELHO'"
Esta última manchete fez meu sangue gelar. Cliquei na notícia, lendo rapidamente sobre casos de mulheres com condições pré-existentes – endometriose severa, miomas, distúrbios de coagulação – que não resistiram à intensidade dos sintomas. Números ainda não confirmados falavam em centenas de mortes, possivelmente milhares.
— Isso é... impossível, — murmurei, mais para mim mesmo do que para Lorena.
— Aparentemente não, — ela respondeu, sua voz misturando dor e uma curiosidade científica que nem mesmo o sofrimento conseguia suprimir. — Há teorias surgindo. Desde as mais absurdas, como armas biológicas ou punição divina, até algumas mais plausíveis, como algum tipo de campo eletromagnético afetando o hipotálamo feminino globalmente.
Mesmo em meio à dor, Lorena não perdia sua essência analítica. Era uma das coisas que eu mais admirava nela – sua capacidade de observar, analisar, teorizar, mesmo quando ela própria era o objeto de estudo.
— Você precisa de algo? Água, analgésicos, mais uma bolsa de água quente?
Ela fez que não com a cabeça. — Já tomei o máximo de ibuprofeno que posso sem fritar meu fígado. Minha mãe me deu um relaxante muscular também. Agora é só esperar passar. — Ela fez uma pausa, mordendo o lábio. — Mas estou preocupada com Eliane. Você falou com ela?
— Ela me mandou uma mensagem estranha sobre o hospital, mas foi cortada no meio. Não consegui mais contato depois disso.
Lorena tentou se sentar, fazendo uma careta com o movimento. — Lee, se isso está acontecendo com todas as mulheres, pense no caos nos hospitais. Eliane é obstetra, ela deve estar no olho do furacão agora.
Ela estava certa, é claro. Peguei meu celular e tentei ligar para Eliane novamente. Nada. Enviei uma mensagem:
"Eli, estamos vendo as notícias. É isso mesmo? Todas as mulheres? Por favor, me diga que você está bem. Estou com Lorena, ela está mal, mas estável. Me responda assim que puder."
Enquanto esperava por uma resposta que temia não vir tão cedo, voltei minha atenção para Lorena. Apesar da dor evidente, ela continuava navegando pelas notícias, absorvendo informações, conectando pontos.
— Isso vai mudar tudo, Lee, — ela disse, sua voz agora mais firme, quase profética. — Se for realmente global, se continuar... pense nas implicações. Sistemas de saúde, economia, política, relações sociais. Tudo.
— Vamos torcer para que seja um evento isolado, — respondi, tentando soar otimista. — Talvez seja apenas um dia, uma semana no máximo.
Ela me olhou com aquela expressão que reservava para quando eu dizia algo ingênuo. — E se não for? E se isso se repetir todo mês? Por quanto tempo? Anos?
A pergunta pairou no ar, pesada como chumbo. Não tinha resposta para ela, ninguém tinha. Estávamos todos, homens e mulheres, navegando em águas desconhecidas, sem mapa, sem bússola, apenas com a certeza crescente de que o mundo como o conhecíamos havia acabado naquela terça-feira ensolarada.
Meu celular vibrou. Uma notificação de uma das redes sociais que raramente usava. Abri por reflexo, e fui imediatamente bombardeado por um fluxo interminável de atualizações. Vídeos de ruas caóticas em grandes cidades, filas quilométricas em farmácias, hospitais com corredores abarrotados de mulheres em diferentes estágios de sofrimento. Hashtags como #SincroniaGlobal, #EventoVermelho e #ApocalipseMenstrual dominavam os trending topics.
E então, em meio ao caos digital, uma mensagem privada. Era Ricardo, meu amigo de faculdade que agora trabalhava como enfermeiro no mesmo hospital que Eliane.
— Leandro, não consigo falar com você por telefone, as linhas estão sobrecarregadas. Sua irmã pediu para avisar que está bem, mas a situação aqui é crítica. Todas as profissionais de saúde do sexo feminino estão afetadas, mas continuam trabalhando mesmo assim. É surreal, cara. Nunca vi nada parecido. Ela disse para você ficar com Lorena, cuidar dela, e não se preocupar. Ela entrará em contato assim que puder.
Um alívio momentâneo me invadiu. Pelo menos Eliane estava viva, funcionando, sendo a guerreira que sempre foi. Mostrei a mensagem para Lorena, que assentiu levemente, seus olhos se fechando por um momento, como se também sentisse alívio.
— Sua irmã é incrível, — ela murmurou. — — Aposto que está cuidando de todo mundo mesmo sentindo a mesma dor.
— Esse é o jeito dela, — concordei, um orgulho familiar aquecendo meu peito em meio à ansiedade geral.
Olhei pela janela do quarto, afastando levemente a cortina. O céu continuava absurdamente azul, mas agora podia ouvir sirenes ao longe, um coro crescente que parecia vir de todas as direções. Na rua abaixo, vi um grupo de mulheres caminhando lentamente, apoiando-se umas nas outras. Um carro passou em alta velocidade, quase atropelando um pedestre distraído.
O mundo lá fora estava mudando rapidamente, adaptando-se à nova realidade com a mesma velocidade com que as notícias se espalhavam. E eu, designer de logos e websites, acostumado a controlar cada pixel na tela do meu computador, me sentia completamente impotente diante da magnitude do que estava acontecendo.
— Vou ficar com você, — disse para Lorena, segurando sua mão. Não era uma pergunta, nem uma oferta – era uma declaração de intenção, uma promessa.
Ela apertou minha mão de volta, seus olhos encontrando os meus com uma intensidade que transcendia a dor física.
— Isso é só o começo, Lee. Algo me diz que vamos precisar muito uns dos outros nos próximos dias. Nos próximos meses. Talvez anos.
Assenti, incapaz de encontrar palavras adequadas para o momento. Lá fora, as sirenes continuavam, um lembrete constante de que o mundo que acordaria amanhã seria fundamentalmente diferente daquele que conhecíamos ontem. E nós, todos nós, teríamos que encontrar nosso lugar nessa nova realidade, pixel por pixel, momento por momento, respiração por respiração.
Os dias que se seguiram ao início do que a mídia agora chamava oficialmente de "Sincronia" foram um borrão de notícias alarmantes, teorias conspiratórias e adaptações improvisadas. Passei a maior parte desse tempo no apartamento de Lorena, dormindo no sofá da sala, ajudando como podia – preparando refeições leves que seu estômago conseguisse tolerar, correndo à farmácia para comprar analgésicos cada vez mais escassos, filtrando as notícias para evitar que o pânico global piorasse sua condição já fragilizada.
No terceiro dia, consegui finalmente uma videochamada com Eliane. A imagem que apareceu na tela do meu celular me chocou profundamente. Minha irmã, sempre tão composta e energética, parecia ter envelhecido anos em apenas alguns dias. Olheiras profundas marcavam seu rosto pálido, o cabelo normalmente bem arrumado estava preso em um coque desleixado, e havia uma exaustão em seus olhos que transcendia o cansaço físico – era o esgotamento de alguém que testemunhara demasiado sofrimento em um curto espaço de tempo.
— Eli, — foi tudo que consegui dizer inicialmente, engolindo em seco diante de sua aparência.
— Estou bem, Lee, — ela respondeu, antecipando minha preocupação. — Só... cansada. Muito cansada.
— Como está a situação aí?
Ela fechou os olhos por um momento, como se reunisse forças para descrever o indescritível.
— Caótica. Estamos operando além da capacidade máxima. Todas as alas foram convertidas para atender mulheres com complicações severas. Tivemos sete mortes só no nosso hospital – mulheres com endometriose grave, condições pré-existentes que não suportaram o choque da Sincronia.
Sua voz falhou ligeiramente, e pude ver o peso da impotência em seus ombros. Eliane havia se tornado enfermeira para salvar vidas, e agora estava testemunhando mortes que não conseguia evitar.
— E você? Como está lidando com... você sabe.
Um sorriso fraco cruzou seus lábios.
— Ironicamente, minha endometriose leve acabou sendo uma vantagem. Já estou acostumada com dores que fariam muitas mulheres desmaiar. Estou tomando meus medicamentos habituais, mais alguns analgésicos, e seguindo em frente. Não tenho escolha.
— Você deveria descansar, Eli. Não pode ajudar ninguém se colapsar.
— Diz o workaholic que provavelmente não dormiu direito desde que isso começou, — ela rebateu, um lampejo de seu humor habitual emergindo brevemente. — Como está Lorena?
— Melhorando, aos poucos. Os primeiros dois dias foram brutais, mas hoje ela já conseguiu comer uma sopa e até trabalhou um pouco na sua tese. Sua mãe está pior – parece que a intensidade dos sintomas aumenta com a idade.
Eliane assentiu, seu rosto assumindo a expressão profissional que eu conhecia bem.
— Estamos observando padrões semelhantes aqui. Adolescentes têm sintomas mais leves, mulheres entre 30 e 45 parecem ser as mais afetadas, especialmente aquelas com histórico de problemas menstruais. Mulheres na menopausa estão tendo sangramentos de novo, algo que os ginecologistas nunca viram antes em tal escala.
Conversamos por mais alguns minutos, trocando informações e preocupações. Antes de desligar, Eliane me deu algumas recomendações para ajudar Lorena – chás específicos, posições que poderiam aliviar as cólicas, sinais de alerta para complicações mais sérias. A chamada terminou com uma promessa mútua de nos mantermos em contato diário, mesmo que apenas por mensagens rápidas.
Ao retornar para o quarto de Lorena com uma xícara do chá de camomila e gengibre que Eliane havia recomendado, encontrei-a sentada na cama, laptop aberto, digitando furiosamente.
— O que está fazendo? — perguntei, colocando a xícara na mesa de cabeceira.
— Documentando, — ela respondeu sem desviar os olhos da tela. — Tudo isso. O início da Sincronia, os sintomas, as reações, as teorias. Estou criando um registro em tempo real.
Sentei-me ao seu lado, observando por cima de seu ombro o documento que já se estendia por várias páginas. Era uma análise meticulosa, quase clínica, mas com lampejos ocasionais de uma perspectiva profundamente pessoal. Típico de Lorena – mesmo em meio à dor, sua mente analítica não descansava.
— Isso pode ser importante, — ela continuou, finalmente olhando para mim. — Se isso continuar, se for realmente global e recorrente como estão especulando, precisaremos entender o que está acontecendo. E não confio nas narrativas oficiais que começarão a surgir.
Havia uma intensidade em seus olhos que eu raramente via, uma mistura de determinação científica e algo mais – uma faísca de indignação, talvez, ou o início de uma raiva que eu só compreenderia completamente muito mais tarde.
— Você acha que vai continuar? Que vai acontecer de novo no próximo mês?
Ela deu de ombros, um gesto que pareceu custar-lhe algum esforço. — Ninguém sabe. Mas estou vendo padrões nas reações. Não nos sintomas físicos, mas nas respostas sociais e políticas. Já estão surgindo divisões claras.
Ela girou o laptop para que eu pudesse ver melhor a tela, onde havia aberto várias janelas com notícias e posts de redes sociais.
—Olhe isso. Grupos religiosos fundamentalistas chamando a Sincronia de 'punição divina'. Políticos conservadores já propondo leis para 'gerenciar' mulheres durante o período. Empresas farmacêuticas correndo para patentear tratamentos. E aqui, olhe – os primeiros relatos de demissões de mulheres que não puderam trabalhar nos primeiros dias.
Passei os olhos pelas manchetes, sentindo um peso crescente no estômago. Lorena estava certa – além da crise médica imediata, as ramificações sociais já começavam a se manifestar, e não de maneiras positivas.
— E tem mais, — ela continuou, clicando em outra aba. — Estão surgindo grupos de apoio espontâneos. Mulheres na menopausa ou que fizeram histerectomia estão se organizando para ajudar as mais afetadas. Estudantes de medicina e enfermagem estão criando redes de telemedicina para orientação remota. Homens como você estão assumindo tarefas de cuidado. É como se estivéssemos vendo o melhor e o pior da humanidade simultaneamente.
Assenti, pensando em como eu mesmo havia testemunhado ambos os extremos nos últimos dias – desde o porteiro do prédio que se ofereceu para buscar medicamentos para Lorena e sua mãe, até o farmacêutico que tentou cobrar três vezes o preço normal pelos analgésicos, alegando "escassez de mercado".
— O que podemos fazer? — perguntei, mais para mim mesmo do que para ela.
Lorena fechou o laptop e segurou minha mão, seu toque mais firme do que eu esperava. — Por enquanto, sobreviver. Documentar. Observar. E nos preparar, porque algo me diz que isso é apenas o começo.
Naquela noite, enquanto Lorena finalmente conseguia dormir algumas horas seguidas, fiquei acordado no sofá da sala, navegando pelas notícias em meu celular. O padrão que ela havia identificado se tornava cada vez mais claro – a sociedade estava se dividindo rapidamente em sua resposta à Sincronia.
Um vídeo em particular capturou minha atenção. Uma mulher de meia-idade, identificada como professora de biologia de uma universidade americana, falava diretamente para a câmera com uma calma surpreendente:
— O que estamos testemunhando não é apenas uma anomalia médica – é um realinhamento fundamental da sociedade humana. Por milênios, o ciclo menstrual foi tratado como um fardo individual, algo a ser escondido, ignorado, suportado em silêncio. Agora, tornou-se impossível ignorá-lo. A Sincronia força todos nós – homens e mulheres – a confrontar uma realidade biológica que metade da população sempre viveu. A questão não é apenas como sobreviveremos a isso, mas como emergiremos do outro lado. Que tipo de sociedade construiremos quando não pudermos mais fingir que o corpo feminino funciona de acordo com as conveniências do capitalismo e do patriarcado?
Suas palavras ressoaram profundamente em mim. Como homem, nunca havia realmente compreendido o que significava viver com essa realidade cíclica, adaptar-se constantemente, continuar funcionando apesar da dor e do desconforto. Agora, vendo Lorena, sua mãe, e milhões de outras mulheres enfrentando uma versão amplificada dessa experiência, sentia-me simultaneamente ignorante e impotente.
Meu telefone vibrou com uma notificação. Era uma mensagem de um grupo de WhatsApp de designers freelancers do qual eu participava. Alguém havia compartilhado um link para um formulário:
"REDE DE APOIO EMERGENCIAL: Estamos organizando uma rede de profissionais autônomos para cobrir projetos de colegas mulheres que estão incapacitadas pela Sincronia. Se você pode assumir trabalho extra, preencha este formulário. Todos os honorários serão repassados integralmente às colegas afetadas."
Sem hesitar, cliquei no link e preenchi o formulário, indicando minha disponibilidade e áreas de especialização. Era um gesto pequeno, quase insignificante diante da magnitude do que estávamos enfrentando, mas era algo concreto que eu podia fazer.
Na manhã seguinte, o quinto dia desde o início da Sincronia, acordei com o som de vozes exaltadas vindo da cozinha. Levantei-me do sofá, ainda desorientado pelo sono insuficiente, e encontrei Lorena discutindo com sua mãe.
— É ridículo, mãe! Completamente absurdo!— Lorena gesticulava com as mãos, seu rosto normalmente pálido agora corado de indignação.
Dra. Cláudia, parecendo mais recuperada do que nos dias anteriores, mantinha uma expressão de resignação profissional. — Não estou dizendo que concordo, Lorena. Estou apenas te informando do que está sendo discutido no conselho do hospital.
— Bom dia, — interrompi hesitantemente, sentindo que havia entrado no meio de algo delicado.
Ambas se viraram para mim, e Lorena imediatamente me puxou para a conversa.
— Lee, você não vai acreditar no que estão propondo. O hospital onde minha mãe trabalha está considerando implementar um sistema de 'licença menstrual sincronizada'. Todas as funcionárias seriam obrigadas a tirar cinco dias de licença durante a Sincronia.
— Isso não parece... ruim? — perguntei, confuso com sua indignação. — Não seria bom que as mulheres pudessem descansar durante os piores dias?
— O problema não é a licença em si,— Dra. Cláudia explicou pacientemente. — É que estão propondo descontar esses dias do banco de horas ou das férias anuais. Essencialmente, punindo mulheres por algo que está completamente fora de seu controle.
— E tem mais, — Lorena acrescentou, sua voz tremendo ligeiramente. — Estão discutindo a possibilidade de ajustar os salários femininos para 'compensar' a perda de produtividade mensal. Minha própria mãe, uma diretora clínica com trinta anos de experiência, poderia ter seu salário reduzido porque algum administrador decidiu que ela vale menos agora!
A injustiça da situação era tão flagrante que fiquei momentaneamente sem palavras. Era apenas o quinto dia, e já estavam surgindo mecanismos institucionais para codificar a discriminação.
— O que você vai fazer? — perguntei à Dra. Cláudia.
Ela suspirou, passando a mão pelo cabelo grisalho. — Lutar, é claro. Já estou organizando uma coalizão de médicas e enfermeiras para apresentar uma contraproposta. Mas não será fácil. Metade do conselho administrativo é composto por homens que nunca experimentaram uma cólica na vida.
Naquele momento, meu celular tocou. Era um número desconhecido, mas atendi mesmo assim – nos últimos dias, havia recebido várias chamadas de pessoas tentando localizar amigos ou familiares em meio ao caos.
— Alô?
— Leandro Barros? — Uma voz masculina, formal, que não reconheci.
— Sim, sou eu.
— Aqui é Paulo Mendes, da Revista Atualidades. Estamos fazendo uma série de reportagens sobre a Sincronia e seus impactos em diferentes setores. Seu nome foi mencionado como organizador de uma rede de apoio entre designers freelancers. Gostaríamos de entrevistá-lo sobre essa iniciativa.
Fiquei surpreso – eu havia apenas preenchido um formulário na noite anterior, dificilmente poderia ser considerado um "organizador".
— Acho que houve algum engano. Eu só me voluntariei para ajudar, não estou organizando nada.
— Entendo. Mas ainda assim, sua perspectiva como homem apoiando mulheres afetadas seria valiosa. Estamos tentando mostrar exemplos positivos de solidariedade em meio à crise.
Hesitei, olhando para Lorena, que observava minha conversa com curiosidade. — Posso pensar sobre isso e retornar sua ligação?
— Claro. Mas precisaríamos fechar até o final do dia. Estamos com prazo apertado.
Depois de anotar seu contato e desligar, expliquei a situação para Lorena e sua mãe.
— Você deveria fazer, — Lorena disse imediatamente. — É importante mostrar que homens também estão se mobilizando, que não é só um 'problema de mulher'.
— Concordo,— Dra. Cláudia assentiu. — Além disso, quanto mais visibilidade essas redes de apoio tiverem, mais pessoas se juntarão a elas.
Ainda me sentia desconfortável. — Não quero parecer oportunista, como se estivesse buscando crédito por fazer o mínimo.
Lorena pegou minha mão, seu toque mais firme do que nos dias anteriores – um sinal de que estava se recuperando fisicamente, mesmo que a indignação ainda queimasse em seus olhos.
— Lee, escute. Nos próximos dias e semanas, veremos muitas pessoas tentando capitalizar sobre o sofrimento alheio. Políticos usando a Sincronia para promover agendas retrógradas, empresas explorando o desespero para lucrar, oportunistas de todo tipo. O mundo precisa ver também o outro lado – pessoas comuns fazendo o que podem para ajudar umas às outras. Não é sobre você; é sobre mostrar que outro caminho é possível.
Suas palavras, como sempre, atingiram o cerne da questão. Assenti, ainda não totalmente convencido, mas disposto a confiar em seu julgamento.
— Tudo bem. Farei a entrevista.
Naquela tarde, enquanto me preparava para a videochamada com o jornalista, recebi uma notificação que mudaria completamente minha perspectiva sobre a Sincronia. Era um e-mail de um cliente importante, para quem eu estava desenvolvendo a identidade visual de uma nova linha de produtos:
"Prezado Leandro,
Em virtude dos recentes eventos e da instabilidade econômica resultante, decidimos suspender temporariamente o projeto de rebranding. Retomaremos contato quando a situação normalizar.
Atenciosamente,
Diretoria"
Fiquei olhando para a tela, um frio se espalhando pelo meu estômago. Este não era um projeto qualquer – representava quase 40% da minha renda prevista para os próximos dois meses. E a linguagem vaga, corporativa, escondia o que eu suspeitava ser a verdadeira razão: medo. Medo de investir em meio à incerteza, medo de como a Sincronia afetaria os mercados, medo do desconhecido.
Enquanto processava essa notícia, outro e-mail chegou. E depois outro. Ao final do dia, três projetos haviam sido "temporariamente suspensos", representando mais da metade da minha renda esperada. A realidade econômica da Sincronia começava a me atingir diretamente.
A entrevista com o jornalista ganhou uma nova dimensão. Não era mais apenas sobre solidariedade abstrata – era sobre sobrevivência coletiva. Falei não apenas sobre a rede de apoio entre designers, mas também sobre como a Sincronia estava expondo fragilidades em nossos sistemas econômicos e sociais, sobre como precisávamos repensar fundamentalmente nossas estruturas de trabalho e cuidado.
— O que mais me impressiona, — disse ao jornalista, encontrando uma clareza que não sabia que possuía, — é como estamos descobrindo que muitas das coisas que considerávamos impossíveis de mudar são, na verdade, apenas escolhas. Sempre disseram que não era viável que pessoas trabalhassem de casa, que horários flexíveis prejudicariam a produtividade, que licenças médicas generosas seriam exploradas. Agora, em apenas uma semana, estamos vendo empresas inteiras reorganizando seus modelos de trabalho, porque não têm escolha. A questão é: por que foi preciso uma crise desta magnitude para reconhecermos que nosso sistema nunca foi realmente projetado para acomodar a realidade dos corpos humanos, especialmente os femininos?
Quando a entrevista terminou, encontrei Lorena parada na porta do quarto, observando-me com uma expressão que não consegui decifrar completamente – uma mistura de orgulho, surpresa e algo mais profundo, mais complexo.
— Você ouviu? — perguntei, ligeiramente envergonhado pela minha eloquência inesperada.
— Cada palavra, — ela respondeu, aproximando-se para sentar-se ao meu lado na cama. — Sabe, quando isso tudo começou, eu estava tão consumida pela dor física que não conseguia ver além dela. Mas você está certo – isso é maior que a dor, maior que a biologia. É sobre todas as estruturas que construímos assumindo que o corpo masculino é o padrão, e tudo mais é um desvio a ser tolerado ou ignorado.
Ela fez uma pausa, olhando pela janela para o céu noturno de Salvador.
— Algo está mudando, Lee. Não apenas em nossos corpos, mas em como vemos o mundo. E não tenho certeza se poderemos voltar atrás, mesmo que a Sincronia acabe amanhã.
Naquela noite, enquanto Lorena finalmente conseguia dormir um sono mais profundo e reparador, fiquei acordado, pensando em tudo que havia acontecido em apenas uma semana. Meu mundo, antes tão previsível com seus prazos e projetos, havia sido virado de cabeça para baixo. A economia que sustentava meu trabalho estava tremendo em suas fundações. As relações sociais que eu tomava como certas estavam sendo reconfiguradas diante dos meus olhos.
E ainda assim, em meio ao caos e à incerteza, sentia uma estranha clareza. Como se a Sincronia tivesse removido um filtro que eu nem sabia que estava usando para ver o mundo. As injustiças que antes pareciam abstratas, distantes, teóricas, agora se manifestavam concretamente, impossíveis de ignorar. As conexões entre sistemas que pareciam separados – saúde, economia, política, cultura – agora se revelavam como uma teia intrincada, onde puxar um fio inevitavelmente movimentava todos os outros.
Peguei meu notebook, abri um novo arquivo e comecei a escrever. Não era um projeto para cliente, nem um exercício criativo – era um mapa. Um mapa de tudo que estava mudando, de como essas mudanças se conectavam, de quem estava sendo mais afetado e como. Era o início do que, mais tarde, se tornaria minha contribuição mais significativa para a era da Sincronia: não pixels e cores em uma tela, mas conexões e padrões que ajudariam a navegar um mundo transformado.
O sol começava a nascer quando finalmente adormeci, o notebook ainda aberto ao meu lado, a tela exibindo não mais logos e tipografias, mas o esboço inicial de uma nova forma de ver o mundo – um mundo onde o café esfriava nas xícaras enquanto a história se reescrevia ao nosso redor.
***
Uma semana após o início da Sincronia, a vida havia adquirido uma nova normalidade – frágil, improvisada, mas ainda assim uma rotina. Lorena estava suficientemente recuperada para retornar à faculdade, embora com uma agenda reduzida. Sua mãe, Dra. Cláudia, havia voltado ao hospital, liderando agora um comitê de crise especialmente formado para lidar com as complicações da Sincronia. Eu alternava entre meu apartamento em Brotas e o deles no Itaigara, tentando manter alguma produtividade enquanto reorganizava completamente minha vida profissional.
A entrevista que dei à Revista Atualidades teve um impacto que jamais poderia prever. O artigo, intitulado "Redesenhando a Solidariedade: Como a Comunidade Criativa Responde à Sincronia", viralizou nas redes sociais. Meu telefone não parava de tocar – outros jornalistas querendo entrevistas, designers oferecendo ajuda, mulheres procurando assistência. De repente, eu havia me tornado, sem querer, um porta-voz de um movimento que mal compreendia.
— Você deveria criar um site centralizando todas essas iniciativas, — sugeriu Lorena numa manhã, enquanto tomávamos café na varanda de seu apartamento. Ela parecia quase recuperada fisicamente, mas havia uma nova intensidade em seus olhos, uma determinação que não existia antes. — Algo que conecte quem precisa de ajuda com quem pode oferecer.
— Não sei se tenho capacidade para coordenar algo assim, — respondi, genuinamente inseguro. — Sou apenas um designer, não um organizador comunitário.
Ela sorriu, aquele sorriso que sempre me fazia sentir simultaneamente desafiado e apoiado.
— E eu sou apenas uma estudante de psicologia. E minha mãe é apenas uma médica. E sua irmã é apenas uma enfermeira. Todos somos 'apenas' algo, Lee. Mas a Sincronia está nos forçando a ser mais.
Suas palavras ressoaram em mim por horas depois. Naquela tarde, sentado em meu pequeno estúdio improvisado em Brotas, comecei a esboçar não apenas um site, mas uma plataforma completa. Algo que pudesse mapear recursos, conectar pessoas, documentar o que estava acontecendo em tempo real. Chamei-o provisoriamente de "Mapa Vermelho" – um nome que, mais tarde, se tornaria conhecido globalmente como uma das principais ferramentas de navegação da era da Sincronia.
Enquanto trabalhava, recebi uma videochamada de Eliane. Sua aparência havia melhorado ligeiramente desde nossa última conversa – as olheiras menos pronunciadas, o cabelo mais arrumado – mas a exaustão ainda era evidente em cada linha de seu rosto.
— Como estão as coisas por aí? — perguntei, ajustando a câmera para que ela pudesse me ver melhor.
— Estabilizando, de certa forma,— ela respondeu, esfregando os olhos. — Os hospitais estão se adaptando, criando protocolos específicos para a Sincronia. As mulheres que sobreviveram à primeira onda estão aprendendo a gerenciar os sintomas. Mas…— ela hesitou, mordendo o lábio inferior.
— Mas o quê?
— Estamos começando a ver os efeitos secundários. Não apenas físicos, mas sociais. Há relatos de demissões em massa de mulheres em alguns setores. Escolas fechando porque não há professoras suficientes. Sistemas de saúde à beira do colapso não apenas pela demanda, mas porque a maioria dos profissionais são mulheres.
Assenti, não surpreso. Já havia notado padrões semelhantes nos dados que estava coletando para o Mapa Vermelho.
— E no hospital?
Ela suspirou profundamente. — É complicado. Por um lado, estamos vendo uma solidariedade incrível entre a equipe. Por outro, há tensões crescentes. Alguns médicos homens estão ressentidos por terem que cobrir turnos extras. Outros estão sendo incrivelmente solidários, assumindo tarefas que normalmente não fariam. É como se a Sincronia estivesse amplificando tanto o melhor quanto o pior em cada pessoa.
— Tenho notado o mesmo aqui,— concordei. — Lembra do Ricardo, seu colega que me enviou mensagem no primeiro dia?
Eliane assentiu, um pequeno sorriso suavizando momentaneamente seu rosto cansado. — Claro. Ele tem sido incrível, assumindo muito mais do que sua parte.
— Ele me ligou ontem. Está organizando um grupo de enfermeiros homens para oferecer suporte adicional, não apenas no hospital, mas em comunidades carentes. Chamaram de 'Irmãos de Sangue'.
Eliane riu, um som que não ouvia há dias. — Esse nome é terrível e brilhante ao mesmo tempo.
— Exatamente o que eu disse! Mas a ideia é boa. Eles estão se revezando para visitar áreas onde mulheres não têm acesso fácil a cuidados médicos, levando analgésicos, absorventes, informações.
— Isso é… — Eliane pareceu buscar a palavra certa. — Esperançoso. Em meio a tudo isso, é bom lembrar que também estamos vendo o surgimento de novas formas de cuidado e solidariedade.
Conversamos por mais alguns minutos sobre nossa família – nossos pais no interior estavam bem, preocupados mas seguros – e sobre como estávamos nos adaptando financeiramente. Eliane, com seu emprego estável no hospital público, estava em situação melhor que eu, com meus projetos cancelados, mas ambos estávamos encontrando maneiras de seguir em frente.
Antes de desligar, ela me olhou com uma seriedade que me fez sentar mais ereto. — Lee, quero que você prometa algo.
— Claro, o que for.
— Cuide de Lorena, mas também cuide de você. O que estamos vivendo agora é apenas o começo. Se os padrões que estamos observando se confirmarem, a Sincronia não foi um evento isolado – é uma nova realidade. E precisaremos de pessoas como você, capazes de ver padrões, fazer conexões, comunicar complexidades de forma acessível.
Suas palavras me pegaram de surpresa. Eliane sempre foi minha protetora, aquela que cuidava de mim. Ouvir esse reconhecimento de minha capacidade, essa confiança em meu papel nesta nova realidade, tocou-me profundamente.
— Farei o meu melhor, — prometi, sentindo o peso e a honra daquele compromisso.
Depois que desligamos, voltei ao trabalho no Mapa Vermelho com renovada determinação. Não era mais apenas um projeto para preencher o tempo ou compensar trabalhos perdidos – era uma resposta concreta a uma necessidade real, uma forma de usar minhas habilidades para algo maior que eu mesmo.
Trabalhei até tarde da noite, perdendo a noção do tempo como costumava acontecer nos dias antes da Sincronia, quando me perdia em projetos criativos. A diferença era o propósito, a urgência, o sentimento de estar contribuindo para algo verdadeiramente importante.
Por volta da meia-noite, recebi uma mensagem de Lorena:
— Ainda acordado? Preciso te mostrar algo. Posso passar aí?
Respondi imediatamente que sim, surpreso com a hora tardia – Lorena raramente saía depois das dez desde o início da Sincronia, ainda recuperando suas energias. Vinte minutos depois, a campainha tocou.
Ela entrou como uma tempestade contida, os olhos brilhando com uma energia que não via há dias. Trazia um laptop debaixo do braço e uma pasta cheia de papéis.
— Desculpe a hora,— disse, depositando tudo sobre minha mesa de trabalho. — Mas não conseguia dormir, e preciso compartilhar isso com alguém que entenda.
— Compartilhar o quê?
Em resposta, ela abriu o laptop e me mostrou uma planilha complexa, cheia de dados, gráficos e anotações.
— Venho coletando relatos, Lee. Centenas deles. Mulheres de diferentes idades, condições de saúde, localizações geográficas. Estou tentando mapear padrões nos sintomas, nas reações, nas adaptações.
Observei os dados, impressionado com a meticulosidade de seu trabalho. — Isso é incrível, Lo. Você está basicamente conduzindo um estudo epidemiológico por conta própria.
— Não é científico o suficiente para ser publicado, claro. Mas estou vendo coisas que os grandes estudos ainda não captaram. — Ela apontou para um gráfico específico. — Olhe isso. Mulheres que já tinham ciclos irregulares antes estão relatando sintomas mais severos durante a Sincronia. E aqui, mulheres com histórico de trauma parecem experimentar não apenas dores físicas mais intensas, mas também reações emocionais mais complexas.
Enquanto ela explicava suas descobertas, notei algo em seu rosto que não estava lá antes – uma combinação de propósito científico e indignação crescente. Lorena sempre foi apaixonada por sua área de estudo, mas agora havia algo mais, algo que beirava a missão pessoal.
— O que você pretende fazer com esses dados? — perguntei, genuinamente curioso.
Ela hesitou, como se articulando algo que ainda não havia colocado em palavras. — Inicialmente, estava apenas documentando para entender. Mas agora... acho que precisamos usar isso. Para educar, para pressionar por mudanças, para criar redes de apoio mais eficazes.
Seus olhos encontraram os meus, uma determinação feroz neles. — As instituições estão falhando conosco, Lee. Governos implementando políticas sem consultar mulheres. Empresas demitindo funcionárias em vez de adaptar condições de trabalho. Sistemas de saúde tratando a Sincronia como uma inconveniência logística em vez de uma crise humanitária.
Assenti, reconhecendo a verdade em suas palavras. Nos últimos dias, havia visto inúmeros exemplos do que ela descrevia – desde a proposta de "licença menstrual descontada" no hospital de sua mãe até notícias de países implementando toques de recolher para mulheres "para sua própria proteção" durante os dias mais intensos da Sincronia.
— E onde eu entro nisso? — perguntei, já suspeitando da resposta.
— Seu Mapa Vermelho, — ela disse, olhando para minha tela onde o projeto estava aberto. — Podemos integrá-lo com meus dados. Criar não apenas um mapa de recursos, mas um mapa de conhecimento. Algo que ajude as pessoas a entenderem o que está acontecendo, a se organizarem, a resistirem quando necessário.
A proposta era ambiciosa, muito além do que eu havia inicialmente imaginado. Não seria apenas um site, mas uma plataforma de ação coletiva. Não apenas design, mas ativismo. Não apenas pixels e café, mas sangue e propósito.
— Seria um trabalho enorme, — comentei, não como objeção, mas avaliando a magnitude do desafio.
— Eu sei, — ela respondeu, seu olhar nunca vacilando. — E não temos ideia de quanto tempo a Sincronia vai durar. Pode ser apenas este mês, pode ser anos. Mas mesmo que acabe amanhã, o mundo já mudou. As estruturas foram expostas. Não podemos fingir que não vimos o que vimos.
Fiquei em silêncio por um momento, absorvendo suas palavras, sentindo seu peso e sua verdade. Finalmente, estendi a mão e peguei a dela.
— Vamos fazer isso, — disse simplesmente.
O sorriso que iluminou seu rosto naquele momento – um sorriso de alívio, gratidão e determinação compartilhada – ficaria gravado em minha memória nos meses e anos difíceis que viriam. Era o sorriso de alguém que encontrava um aliado quando mais precisava, que via um caminho quando tudo parecia escuro.
Trabalhamos juntos até o amanhecer, integrando nossos projetos, planejando próximos passos, imaginando possibilidades. Em algum momento, fiz mais café – não o café despreocupado dos dias anteriores à Sincronia, mas um café de vigília, de trabalho com propósito, de olhos bem abertos para uma realidade transformada.
Quando o sol finalmente nasceu, tingindo o céu de Salvador com tons de rosa e laranja, paramos para observar pela janela. A cidade estava acordando para seu sétimo dia na nova era – carros começando a circular, pessoas dirigindo-se ao trabalho, a vida tentando seguir seu curso.
— Parece tão normal lá fora, — comentou Lorena, apoiando a cabeça em meu ombro. — Como se nada tivesse mudado.
— Mas mudou, — respondi, abraçando-a gentilmente, consciente de que seu corpo ainda estava se recuperando. "E continuará mudando."
Naquele momento, meu celular vibrou com uma notificação. Era uma mensagem de um grupo de WhatsApp que havia sido criado para coordenar a rede de apoio entre designers. Alguém havia compartilhado uma notícia:
"CONFIRMADO: CIENTISTAS PREVEEM NOVO CICLO DE SINCRONIA EM 28 DIAS"
Lorena e eu lemos a mensagem juntos, um arrepio percorrendo minha espinha. Não havia sido um evento isolado. A Sincronia voltaria, mês após mês, como um relógio implacável marcando uma nova era.
— Então é isso, — disse Lorena, sua voz surpreendentemente firme. — Não é uma crise temporária. É nossa nova realidade.
Assenti, sentindo o peso daquela confirmação, mas também uma estranha clareza. Os últimos vestígios de negação ou esperança de um rápido retorno à normalidade se dissipavam como a névoa matinal sob o sol nascente.
— Precisaremos de mais café, — disse finalmente, um comentário banal que nos fez rir, um riso que liberava a tensão acumulada e nos lembrava que, mesmo em meio a transformações sísmicas, ainda éramos humanos com necessidades simples e momentos de leveza.
Enquanto preparava uma nova garrafa de café, olhei para Lorena, para os papéis espalhados sobre a mesa, para a tela do computador exibindo nosso projeto conjunto, e senti algo inesperado: propósito. Não o propósito tranquilo de um designer satisfeito com um bom trabalho, mas o propósito urgente de alguém que encontrou seu lugar em um momento histórico.
Até uma semana atrás, minha vida era uma aquarela, mas agora é uma tela em branco sendo redesenhada a cada dia, cada hora, cada momento. Não sei o que o futuro reserva – para mim, para Lorena, para Eliane, para o mundo. Mas sei que não enfrentaremos sozinhos. E talvez, no final, seja isso que importa: não os pixels perfeitos ou o café perfeitamente preparado, mas as conexões que fazemos, as pontes que construímos, as mãos que seguramos enquanto navegamos juntos por águas desconhecidas.
O café está pronto. Um novo dia começou. E com ele, uma nova era que exigirá de todos nós muito mais do que jamais imaginamos ser capazes de dar. Mas daremos, porque não há alternativa. Daremos, porque é o que significa ser humano em tempos de transformação. Daremos, porque no final, quando olharmos para trás para estes dias, queremos poder dizer que estivemos à altura do momento histórico que nos coube viver.
Sirvo duas xícaras de café. Lorena sorri, cansada mas determinada. Voltamos ao trabalho. O mundo não espera. E nem nós.
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